"Socialismo e liberdade"

"Socialismo e liberdade"
"Proletários de todos os países, uni-vos!" (Karl Marx e Friedrich Engels; Manifesto do Partido Comunista)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Socialismo: pão ou liberdade?

Cuba foi o primeiro país socialista na América, e o único que apesar de algumas concessões, manteve-se leal ao marxismo-leninismo, motivo pelo qual sua revolução é idolatrada pela esquerda latino americana, em especial pelos comunistas. É inegavel que o socialismo cubano conquistou avanços sociais para o povo, como erradicar o analfabetismo e garantir um serviço de saúde pública digno de aplausos até daqueles que odeiam o comunismo, mas também é inegavel que o socialismo cubano era dependente da antiga URSS, inclusive copiando o regime autoritario e burocratico de partido único, que felizmente é questionado pelos setores lucidos e democráticos da esquerda socialista, que sabem ser esse regime uma antítese do marxismo, que em hipótese alguma defende ditaduras de partido único, economia burocratizada e demais desvios existentes no socialismo cubano.

Leia o texto abaixo e reflita.


Socialismo: pão ou liberdade?
Autores: Robério Paulino e Rose Naves - militantes do PSOL - Partido Socialismo e Liberdade

Nossa admiração pela Revolução Cubana e a defesa incondicional que dela fazemos contra a agressão imperialista não pode ser confundida com apoio ao regime político antidemocrático de Fidel Castro, nem pode implicar silêncio perante seus atos repressivos, como a onda de prisões de dissidentes e execuções de fugitivos da ilha em 2003.

Desde já não creditamos qualquer direito aos cínicos assassinos imperialistas, como do governo de Bush ou da União Européia, para criticar Cuba ou falar de democracia e "direitos humanos", quando são eles os maiores tiranos a matar milhares diariamente, seja de fome, pelos seus bloqueios ou diretamente com suas bombas, como vimos no Iraque recentemente. A discussão e as críticas que fazemos neste texto vão no sentido oposto ao dos imperialistas, partem da necessidade de defesa do socialismo.

Como todo fenômeno que embute o contraditório, o processo revolucionário cubano expressa os grandes avanços e ao mesmo tempo a trágica degeneração em que infelizmente terminaram as primeiras experiências de construção do socialismo no século XX, das quais, em nossa opinião, a maior parte da esquerda socialista, apegada ao velho, nega-se até agora a tirar as lições necessárias.

A Revolução Cubana de 1959 e as demais revoluções anticapitalistas do século anterior tiveram o mérito histórico e inquestionável de, ao abolirem o capitalismo, assegurarem às massas de seus países avanços sociais consideráveis, como também abriram caminho ao proletariado mundial na trilha de construção do socialismo, fazendo avançar substancialmente a polarização entre trabalho e capital. Por isso, são nossas revoluções.

Por outro lado, sem que isso anule os elementos positivos, a degeneração posterior em regimes políticos burocráticos e ditatoriais, de repressão brutal contra qualquer dissidente, a exemplo dos regimes soviético e de Cuba, atualmente, contribuiu sobremaneira para desacreditar a causa socialista perante as massas trabalhadoras e a juventude nos países capitalistas e mesmo no Leste Europeu, como vimos na déblacle generalizada desse tipo de regime naquelas regiões.

Como Cuba seguiu o modelo do regime de "socialismo real" soviético, não se pode entender em absoluto o que acontece na ilha sem novamente lançar nosso olhar sobre o que se passou no Leste Europeu. A partir da Revolução Russa de 1917, se instala a primeira experiência socialista da história humana, dando origem a ex-URSS, que pelo seu poderio industrial, político e militar dividiu o mundo em dois, marcando a vida de todos países e as gerações no século passado.

Com a nacionalização e planificação da economia, não somente nas áreas de educação, saúde e habitação, deram-se grandes conquistas a favor das massas trabalhadoras. Também na economia e na ciência os saltos foram enormes. Prova disso foi o papel central que a ex-URSS jogou para derrotar a máquina de guerra nazista ou ainda sua saída na frente na corrida espacial. No início dos anos 90, entretanto, após sete décadas, todo o sistema soviético ruiu e hoje a maioria dos países do Leste Europeu vive um processo de restauração do capitalismo, e as conquistas da revolução retrocedem.

Vários foram os motivos que parecem ter contribuído para tal desfecho. A atrasada base material e cultural da qual se partiu, o isolamento da revolução e as constantes agressões imperialistas foram alguns desses elementos de caráter objetivo, que confirmaram a impossibilidade de construir o socialismo em um único país. Por exemplo, a agressão nazista custou à população soviética aproximadamente 25 milhões de mortos, cerca de metade de todas as vidas perdidas na Segunda Guerra Mundial.

Nenhum desses fatores, entretanto, impediu que o país, com na base na planificação socialista da econômica, crescesse velozmente até pelo menos o final da década dos anos 60. Mas aquelas condições extremas levaram, desde cedo, à degeneração burocrática e a um regime político totalitário, que em nome do socialismo, pisoteou os mais caros princípios socialistas. Um Estado burocrático hipertrofiado, dirigido por um partido único a defender os privilégios de seus membros, que em nome dos trabalhadores os substituiu e os reprimiu violentamente.

Mesmo liberdades políticas básicas, como o direito de livre deslocamento, opinião e organização, conquistadas a duras penas contra a burguesia dentro de sociedades capitalistas foram negadas. Com o pretexto de defesa do socialismo contra a agressão externa, instalou-se um regime de terror e medo permanente, de brutalidade similar à brutalidade capitalista. Todo dissidente era imediatamente acusado de agente do imperialismo e massacrado.

O caráter do regime político e a rejeição a ele por parte da população soviética parecem ter sido os elementos fundamentais para o colapso da ex-URSS. São muitas as evidências de que a falta de liberdade, a repressão indiscriminada e os assassinatos massivos de dissidentes, mesmo quando genuínos amantes da causa socialista, debilitaram em muito suas potencialidades econômicas, sociais e morais. O bloqueio sistemático de informações teve um papel decisivo para a decadência econômica do país nas últimas décadas, deixando o país para trás na revolução da informática que varreu o mundo a partir dos anos 70. De uma trava relativa na primeira fase ascendente, o regime ditatorial passou a ser um freio absoluto ao desenvolvimento posterior da sociedade.

A cínica propaganda imperialista não deixou de aproveitar as contradições do novo Estado. Apesar de que tanto o imperialismo norte-americano como os europeus foram os maiores fomentadores de guerras, massacres e ditaduras. O imperialismo utilizou sistematicamente o caráter ditatorial do regime soviético e dos estados que posteriormente se assemelharam a ele para identificar socialismo com totalitarismo e falta de liberdade, em oposição às suas sociedades "democráticas". Inquestionavelmente, na consciência coletiva dos setores de massa, essa guerra ideológica, nós, socialistas, perdemos.

Os processos de Moscou, onde dissidentes das próprias fileiras socialistas eram falsamente acusados, julgados e sentenciados à morte, não foram invenções da mídia capitalista. Seja pela intensa propaganda imperialista, mas também pelo que as massas viam no campo soviético, uma das marcas distintivas que ficou no imaginário popular dos países capitalistas nesse período foi que, enquanto o capitalismo estava identificado com desigualdade e injustiça social, mas com alguma liberdade, o socialismo ficou associado com igualdade social, mas acompanhado de totalitarismo. Logo, as enormes conquistas sociais das revoluções foram ofuscadas pelo aspecto brutal de seus regimes.

Sem entender esta marca distintiva do século passado e revolucionar suas concepções, será difícil que o movimento socialista consiga ganhar corações e mentes e virar novamente o jogo contra o capital por um bom tempo. Dizemos todo dia que o capitalismo é selvagem e desumano. Mas infelizmente, as experiências socialistas até nosso tempo, apesar dos avanços sociais, não se mostraram menos desumanas e menos brutais no terreno das relações políticas.

Não negamos as especificidades do processo cubano, mas ninguém questiona que os países surgidos de revoluções anticapitalistas depois da Segunda Guerra, como China, Vietnã, Coréia do Norte e também Cuba, no marco da extrema polarização da Guerra Fria, adotaram o modelo soviético, de partido comunista único, fusão com o Estado, transferência do poder de fato dos trabalhadores para as instâncias do partido, culto à personalidade, monolitismo político e repressão a qualquer dissidência, justificado com o axioma estalinista da necessidade de unidade contra a agressão imperialista, mesmo quando a situação permitia um grau maior de democracia interna. Estas foram características indiscutíveis do chamado "campo socialista", do qual o regime cubano é remanescente, agora sem poder contar com a ajuda da ex-URSS.

Como já dissemos, isso não nega os avanços sociais. Contrastando com a miséria reinante em muitos países latino-americanos, os méritos e as conquistas da revolução cubana são inquestionáveis. Em menos de duas décadas praticamente acabou-se com o analfabetismo, flagelo até hoje existente no Brasil. O sistema educacional assegura educação pública até o nível superior. O desenvolvimento na área de saúde é dos mais avançados, como reconhece a ONU, sendo referenciado nas áreas de vacinas e doenças especiais; médicos cubanos atuam em todo mundo, especialmente ajudando as populações pobres africanas.

Ainda que existam problemas na área habitacional, a questão da moradia foi enfrentada já na década de 60 com a construção, por meio de brigadas deslocadas das empresas, de dezenas de milhares de residências; os aluguéis são subsidiados. Nos esportes, a repetida segunda colocação de Cuba no quadro de medalhas dos Jogos Pan- Americanos, atrás apenas dos EUA, também expressa esses avanços.

Não menos importante é o significado político de que um pequeno país, a poucas milhas de distância dos EUA, tenha desafiado a mais poderosa potência capitalista e mostrado que é possível manter sua soberania nacional.

Em contradição com esses avanços, o aspecto coercitivo de regime é atestado pela onda de repressão ocorrida em abril de 2003. Em um rito quase sumário, de menos de 20 dias, o regime cubano prendeu 75 dissidentes e os sentenciou a penas de seis meses a 27 anos, todos acusados de conspirar com o representante americano em Cuba, James Cason. A imprensa, inclusive a cubana, foi impedida de acompanhar os julgamentos. Além disso, três homens que seqüestraram um barco e tentaram fugir para a Flórida foram executados, apenas duas semanas após serem presos. Mesmo dentro do capitalismo não se condenam seqüestradores à morte, especialmente se não houve mortes, e os prazos de defesa em geral são maiores.

Condenando as prisões, José Saramago rompeu com o regime cubano e declarou: "Não se entende como, se houve conspiração, o encarregado do escritório de interesses dos EUA em Havana ainda não tenha sido expulso" (1). Em relação às execuções, nenhum argumento de defesa do socialismo pode justificar tal brutalidade. Nos parece mais que tenha sido um exemplo intimidador aos milhares de cubanos que, insatisfeitos com o aumento das dificuldades materiais, tentam fugir, podendo levar o regime a perder o controle. Não são burgueses os que estão fugindo, estes foram embora até 1962. São cidadãos comuns que fogem muitas vezes para trabalhar nos EUA e enviar dinheiro às famílias em dificuldades, como muitos já o fazem. Tanto é assim que a guarda costeira norte-americana, ao interceptá-los, os reenvia de volta a Cuba, onde são presos.

O desenlace do processo cubano estará cruzado pelo choque de elementos contraditórios: uma formação social muito progressiva por suas conquistas sociais oriundas dos elementos socialistas de sua gênese, mas dirigida por uma ditadura burocrática anacrônica e obsoleta, que quita do povo cubano as liberdades de deslocamento, livre opinião, crítica e organização, que, pelo medo e pela repressão, mina as forças criadoras da sociedade cubana, pondo em risco suas conquistas revolucionárias e abrindo espaço para a restauração capitalista, como já provou o processo soviético. Os elementos de capitalismo que o regime de Fidel Castro vem introduzindo na economia não dizem outra coisa.

É um grave erro acreditar que criticar os aspectos negativos de regimes como o cubano é fazer o jogo do capital ou de sua mídia. Com este argumento se assassinaram milhares de socialistas honestos na ex-URSS. Felizmente, tal argumento foi enterrado com o estalinismo no Leste Europeu, pois é desonesto, falacioso e nenhuma mentira sobrevive para sempre. Assim como defendemos o povo cubano contra a agressão imperialista, é nosso dever condenar categoricamente tais atos repressivos. Eles sim fornecem argumentos aos propagandistas do capital. Além disso, tais barbaridades se deram enquanto milhões estávamos nas ruas para impedir a agressão imperialista ao Iraque.

Como indiscutivelmente grande parte dos cubanos ainda apóia Fidel Castro, os defensores do regime cubano usam o argumento da grande participação em manifestações. Mas esquecem que manifestações multitudinárias também tomavam as cidades da ex-URSS. Além do que é temerário faltar a uma convocação oficial para uma manifestação em um país onde quase todas as empresas e empregos são públicos e controladas pelo partido. Ademais, se há apoio ao regime, por que este tem que impedir brutalmente a saída de tantos fugitivos? Um país socialista não pode ser uma prisão. Muros, como o de Berlim, já não funcionam.

O que a experiência cubana e a soviética suscitam é uma discussão sobre nossa concepção de socialismo e sua relação com a democracia e com a liberdade. Os capitalistas, dentro de sua limitada democracia, têm que aceitar, a exemplo do Brasil, a existência e legalidade inclusive de partidos comunistas, como também de religiões diversas. Por que num país que se pretende socialista deve existir um único partido? Por que não se pode tolerar as diferenças, o direito das minorias que estão no campo da revolução de existir e de criticar o regime?

Mesmo na democracia capitalista, dentro dos limites dos interesses do capital, a imprensa pode criticar duramente seus governos, como os de Nixon e Clinton. Por que em Cuba, sequer a imprensa que defende o regime pode acompanhar e dar publicidade aos julgamentos dos opositores? Poucos meses antes de ser assassinada, alertando sobre os perigos que ameaçavam a Revolução Russa, Rosa de Luxemburgo escreveu: "...sem liberdade ilimitada de imprensa, sem possibilidade de se associar e de se reunir, a dominação de vastas camadas populares é totalmente impensável" (2).

Tampouco a necessidade de uma ditadura de classe para enfrentar o capital pode ser justificativa para regimes de exceção permanente. Em toda a história humana, as classes dominantes sempre usaram da violência para defender seus privilégios. Os patrícios de Roma, os barões feudais, os gentlemem ingleses, os escravistas, todos derramaram rios de sangue contra aqueles que os enfrentaram. Por isso, para assegurar seu poder e defender os interesses da maioria, as classes trabalhadoras têm todo o direito de usar a ditadura contra as classes reacionárias minoritárias. Mas este não pode ser mais que um regime curto e transitório até que o poder esteja consolidado. Não pode ser uma ditadura permanente sobre a maioria, como se deu na ex-URSS, mas sim a ditadura da imensa maioria, para a qual deve existir ampla democracia. No texto sobre a Revolução Russa, Rosa alertava:

"A democracia socialista começa com a destruição da dominação de classe e a construção do socialismo. ... Ela nada mais é que a ditadura do proletariado. Perfeitamente: ditadura! Mas esta ditadura consiste na maneira de aplicar a democracia, não na sua supressão. ... esta ditadura precisa ser obra da classe e não de uma pequena minoria que dirige em nome da classe..." (3).

Não estamos falando aqui da democracia eleitoral e parlamentar, que pedem os capitalistas. Essa é apenas uma ilusão em uma urna. Antes de tudo, o que o capitalismo nega é a democracia social, o direito de comer, de viver. Mesmo no aspecto formal, sabemos das severas restrições da democracia burguesa. Entretanto, à limitada "democracia" capitalista o socialismo não pode contrapor a ditadura do partido único, a perseguição aos críticos, a supressão da liberdade e o culto à personalidade, que tenta transformar homens em deuses, mesmo quando esses não passam de ditadores sanguinários, como Stalin.

A democracia socialista da qual falamos é aquela que não nega as liberdades coletivas e individuais conquistadas a duras penas no capitalismo, pelo contrário, precisa ampliá-las e, como dizia Lênin, pode ser dez vezes mais democrática que o regime do capital. Deve pressupor, além do direito dos "produtores livres" - na acepção marxiana - de decidir e controlar o que produz e se faz no país, os mais amplos direitos de opinião e crítica, de livre e completa informação, de deslocamento, de organização em distintos partidos ou organizações sociais autônomas, como condição de progresso para a grande maioria. A democracia não é um perigo, não debilita, mas fortalece o socialismo. Antes da coerção, o socialismo deve-se afirmar pelo convencimento, pelo esclarecimento.

Sabemos do fascínio exercido pela Revolução Cubana para toda uma geração e entendemos que, entre os que ainda hoje defendem o regime de Fidel Castro, existem honestos socialistas, que acreditam dessa forma estar defendendo a revolução do imperialismo. Assim como denunciamos o bloqueio, nos somaríamos a eles para defender incondicionalmente Cuba de uma agressão imperialista direta. Apoiar o senil regime cubano, entretanto, é um equívoco.

A melhor defesa que fazemos da Revolução Cubana é nos distanciando ideologicamente dela, exigindo uma verdadeira democracia socialista naquele país e, principalmente, estimulando as lutas contra o imperialismo nos demais países.

Só será possível ganhar novamente as massas aprendendo com os equívocos do século XX, construindo uma visão radicalmente nova e democrática de socialismo, que deixe para trás toda brutalidade e intolerância para com as diferenças, que à igualdade unam-se a mais ampla liberdade, o respeito e a humanidade. Apesar dos tropeços, temos o direito de continuar sonhando. O socialismo não pode ser somente pão. Será pão e liberdade ou não será.

(1) José Saramago, Folha de S. Paulo, 16 de abril de 2003

(2) Rosa de Luxemburgo, A Revolução Russa ( Petrópolis, Vozes, 1991), p. 90.

(3) Idem, ibidem, p. 96.

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