"Socialismo e liberdade"

"Socialismo e liberdade"
"Proletários de todos os países, uni-vos!" (Karl Marx e Friedrich Engels; Manifesto do Partido Comunista)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A crise do socialismo

"Ao fim e ao cabo, o que se teve foi a pura e simples ditadura do partido único. O proletariado de que se trata não é aquele constituído pelos trabalhadores reais. Estes, como disse Lenin, "não se desembaraçarão facilmente dos seus preconceitos pequeno-burgueses" e, portanto, também precisarão ser "reeducados, através de uma luta prolongada, sobre a base da ditadura do proletariado" (O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Moscou, Ed. Progresso). Do que se trata efetivamente é do partido, isto é, da "expressão dos interesses históricos do proletariado", o qual é chamado a ser o verdadeiro governante. (...)

A consagração de direitos individuais e sociais em lei, classificada pejorativamente na categoria das liberdades formais, seria uma concessão inadmissível à democracia burguesa. Mesmo porque, se a ditadura do proletariado significa democracia para a maioria explorada, isso ocorre não porque essa disponha de meios efetivos de exercício do poder. Resulta tão somente da suposição de que o partido, por expressar os "interesses históricos do proletariado", governa de fato para a maioria, ainda que esta não tenha consciência disso.

De fato, a missão imanente do proletariado só se manifesta enquanto verdade revelada - o marxismo-leninismo - através do partido. A direção do partido, e só ela, é a garantia de que o futuro comunista será efetivamente construído. Ao partido, o proletariado suposto, cabe governar; ao proletariado real, obedecer.

É "natural' que, no limite, tal concepção tome a forma de terrorismo de Estado. Se a ética, entendida como parte integrante da ideologia, é apenas a "ética da classe", não há por que se estabelecerem limites para o emprego da violência nas situações em que os "interesses históricos de classe", os desígnios da história, estiverem em jogo. Ainda quando a contestação venha do proletariado real, desde que ameace o monopólio do poder pelo partido, precisará ser esmagada sem vacilação, como, aliás, ocorreu com o levante de Kronstadt, em 1921."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")

A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse. O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado socialismo real, foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no marxismo-leninismo.

Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin. Portanto o stalinismo não foi resultado de uma "contra-revolução burocratica", como insistem em dizer os trotskistas. O stalinismo é resultado dos graves erros existentes no leninismo, ou seja, no bolchevismo, que ao reinterpretar a concepção marxista da ditadura do proletariado como ditadura do partido do proletariado, ou seja, ditadura do partido comunista, acabou por transforma-la em um regime arbitrário, sem restrições, que logo se transformaria no totalitarismo stalinista.

Essa ditadura se fez presente desde a vitória da revolução e o começo do governo soviético. Não podemos esquecer que em 5 de janeiro de 1918, apenas dois meses após a vitória da revolução, a Assembléia Constituinte que havia sido eleita democraticamente no final de novembro de 1917, mas onde os bolcheviques não tinham maioria, se reuniu pela primeira e última vez, pois foi dissolvida na noite do mesmo dia em um golpe promovido pelo governo dirigido pelos bolcheviques.

A partir desse episódio, o governo soviético passou a perseguir outras forças de esquerda(mencheviques, socialistas revolucionários, anarquistas), até que em julho de 1918, após uma revolta promovida pelos socialistas revolucionários de esquerda, todos os partidos foram proibidos, com excessão do Partido Comunista da Rússia(bolchevique). Então os sovietes e os sindicatos se transformaram em correias de transmissão do Partido Comunista. E o pior, após o atentado praticado por uma ativista socialista revolucionária de esquerda contra o lider bolchevique Vladimir Lenin, em agosto de 1918, que o deixou ferido, os bolcheviques lançaram uma política de terrorismo de Estado, pois bastava que algum individuo suspeito de praticar atividades contra-revolucionárias, e pertencesse a classe burguesa, para ser executado sem nenhum julgamento. Individuos não pertencentes a burguesia que fossem suspeitos, eram presos e mandados para campos de trabalho forçado. Foi a fase do chamado "TERROR VERMELHO".

Essa política terrorista do leninismo, ou seja, do bolchevismo, foi usada não somente contra supostos inimigos de classe, mas também contra a própria classe trabalhadora, como demonstra a repressão contra greves e rebeliões populares decorrentes da fome causada pela política do "comunismo de guerra". E o principal, a brutal repressão ao levante do soviet de Kronstadt, onde os bolcheviques usaram da calúnia infame ao chamar de "agentes do imperialismo e da contra-revolução", os revoltosos que sempre estiveram ao lado da causa socialista, inclusive tendo sido chamados de "honra e glória" da revolução pelo lider do Exército Vermelho, o bolchevique Leon Trotsky, e que se rebelavam para defender uma democracia socialista, onde o poder residisse nos sovietes e não em nenhum partido, e houvesse liberdade de imprensa, pluripartidarismo e eleições livres.

A revolucionária marxista polaco-alemã Rosa Luxemburgo, que em hipótese alguma pode ser classificada como "revisionista" ou "oportunista", sempre criticou Lenin e o bolchevismo, tanto que no clássico "Questões de organização da social-democracia russa", escrito em 1904, criticou o modelo autoritario de partido defendido por Lenin. Apesar de ter apoiado a revolução, inclusive se solidarizando com os bolcheviques, Rosa não se deixou levar por uma visão acritica, beata, e de sacristia sobre esse processo revolucionário. Ela manteve sua critica ao que achava errado no bolchevismo e foi profética ao alertar para os consequências dos desvios autoritários promovidos por Lenin e seus camaradas, no clássico "A Revolução Russa", escrito em 1918.

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")

Segundo o cientista social Michael Löwy, um dos mais importantes teóricos do marxismo na atualidade: "Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar "como que por magia, a mais bela das democracias", Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária. É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")

O regime bolchevique preparou o terreno para o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; em Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo)

A esquerda precisa romper com a tradição autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia. Por isso deve abandonar a idéia equivocada de que os fins justificam os meios, e principalmente, ter na ética e na radicalidade democrática, a base de sua atuação política.

Além de resgatar os clássicos de Marx e Engels, a esquerda precisa buscar em Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, na chamada "Escola de Frakfurt", no eurocomunismo, e na Teologia da Libertação, as bases na qual se fundamentar sobre o ponto de vista filosófico-ideológico, construindo uma alternativa real ao capitalismo, possibilitando assim a retomada da luta pelo fim da exploração do homem pelo homem.

"Está mais do que provado que a construção de uma sociedade nova é impensável sem a adesão consciente do povo. As supostas tentativas de fazê-la através de métodos impositivos, da manipulação ou do emprego de aparatos coercitivos resultaram inevitavelmente na Construção da antiliberdade; uma antiliberdade que mal sobrevive à própria crise, como é notário em todos os países do "socialismo real".

Portanto, o novo Estado, aquele que deverá emergir da superação do Estado capitalista, precisará ser concebido como um Estado socialista necessariamente democrático e de direito, submetido a uma sociedade civil autônoma e plural, bem desenvolvida e articulada. Trata-se de aprofundar o caminho já aberto por Gramsci.

Um item destacado refere-se à teoria econômica do socialismo. A experiência do "socialismo real" deixa evidente que a gestão burocrática ultra centralizada é fonte inesgotável de desperdício, destruição do meio ambiente, corrupção e ineficiência.

O neoliberalismo vem se apoiando nessa evidência para tentar comprovar o valor supremo da livre iniciativa. Resistir a essa onda com a reiteração do estatismo, além de realimentar os fatores de destruição e de crise, é autocondenar-se à total defensiva ideológica. (...)

O que significa que, numa sociedade socialista renovada, não deverá haver lugar nem para a livre iniciativa, que se alimenta do culto ao indivíduo empreededor-consumidor, nem para o estatismo, que se baseia no enquadramento do indivíduo produtor dentro da regra estabelecida através do plano."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")


Leia o texto abaixo e reflita

A INFÂNCIA DE UM CHEFE

Ruy Fausto*

Simon Sebag Montefiore que, com "A Corte do Czar Vermelho" [Cia. das Letras], espécie de análise histórico-etnológica de Stálin, havia provocado uma pequena revolução na "stalinologia" e, em certa medida, na sovietologia em geral, lança agora este "Jovem Stálin", que se ocupa da vida do "pai dos povos" até a sua participação no primeiro governo bolchevique, em novembro de 1917.

Como o livro anterior, este é o resultado de um longo trabalho: quase dez anos de investigação em 23 cidades e nove países, incluindo pesquisas em arquivos recém-abertos em Moscou e nas cidades georgianas de Tbilisi e Batumi, além da utilização de memórias, em boa parte inéditas, de contemporâneos mais ou menos obscuros.

A primeira reação diante de tal tipo de trabalho é de ceticismo. Esse mergulho na vida do tirano poderia levar a resultados históricos de alguma relevância? Na realidade, o livro é importante. Sem dúvida, pode-se dizer que ele não inova propriamente, "apenas" radicaliza o que já fora revelado pelo livro anterior e por textos de outros autores. Só que essa radicalização vai longe. Há nele três elementos, de interesse crescente.

Em primeiro lugar, para além do que já se sabia por meio de "A Corte do Czar Vermelho", o leitor descobre um Stálin com qualidades intelectuais-artísticas bem superiores às que poderia sugerir o retrato que dele faz Trótski.

O jovem Stálin não só canta bem e é um grande leitor, principalmente de literatura e história, mas é um poeta georgiano de qualidade apreciável (os poemas em tradução, que o volume traz, parecem confirmar esse julgamento).

O Stálin poeta foi incluído em antologias da poesia georgiana do início do século e, segundo Montefiore, ele é um "clássico georgiano menor". O futuro "pai dos povos" "foi admirado na Geórgia como poeta antes de ser conhecido como revolucionário".

Montefiore diz também, "en passant", que Stálin lia Platão no original grego (língua que deve ter aprendido no seminário). Ele não foi um indivíduo inculto; mesmo o epíteto de semiculto talvez seja insuficiente. Stálin foi um intelectual de estilo provinciano (não conseguiu dominar as línguas modernas fora o russo, tinha gostos muito convencionais em arte etc.). Porém, se Stálin foi mais intelectual do que se supunha, ele também foi mais bandido… Suas atividades de "expropriador" são conhecidas, principalmente o famoso ataque às "carruagens pagadoras" do Banco do Estado em Tiflis, em junho de 1907, fato noticiado com destaque pela imprensa mundial da época.

O assalto de Tiflis, planejado por Stálin, mas do qual ele provavelmente não participou de forma direta, foi executada por um grupo de homens e mulheres dirigido por Kamo, um bandido sanguinário e psicopata, totalmente fiel a Stálin. Segundo os arquivos da polícia secreta czarista, nele morreram mais ou menos 40 pessoas. Stálin se comportava como um verdadeiro chefe de bando, mesmo se só guardasse para si a glória e o poder (que sempre foram seus maiores objetivos): o dinheiro ia para os cofres da organização bolchevista.

Stálin planejou e dirigiu outras ações violentas, incluindo talvez um ato de pirataria contra um navio no mar Negro, arrancou dinheiro de comerciantes e industriais, sob ameaça de morte ou de incêndio de propriedades, e mandou matar espiões (segundo alguns, liqüidou também gente que simplesmente não lhe inspirava confiança). Assim, nas palavras do autor, "Stálin era uma rara combinação: ao mesmo tempo intelectual e assassino".

É por causa dessa dupla condição - esse é o ponto importante - que ele caiu nas boas graças de Lênin. Também aqui os fatos, em grande parte pelo menos, já eram conhecidos, mas Montefiore mostra bem o quanto Lênin apreciava Stálin, e como iria promover sua ascensão na hierarquia, depois da cisão formal do partido bolchevique (1912).

"Esse é exatamente o tipo de pessoa de que necessitamos", diz Lênin sobre Stálin, nos anos 1910, respondendo às objeções de um menchevique. Numa carta a Gorki - esta bem conhecida -, Lênin se refere a Stálin como o seu "maravilhoso georgiano". Às vésperas do quinto Congresso da Social-Democracia russa, em Londres, em abril-maio de 1907, Lênin encontra Stálin em Berlim.

Lá, eles conversam sobre a iminente operação de Tiflis (!) e sobre os meios para remeter o dinheiro. No congresso, onde, por proposta dos mencheviques, as expropriações são proibidas pelo partido, sob pena de expulsão, Lênin afirma não conhecer Stálin.

Em 1912, junto com Zinoviev, Lênin propõe que Stálin seja cooptado para o Comitê Central bolchevique. E, em 1922, assegura, com Kamenev, a nomeação de Stálin como secretário-geral do Comitê Central.

Se as coisas se passaram assim, é preciso concluir - não, como pretende o autor, que o stalinismo é simples continuação do leninismo: as diferenças entre os dois não desaparecem apesar de tudo isso - que o leninismo "preparou a cama" para o stalinismo.

Meios e fins

Lênin sempre deixou claro que não tinha maiores problemas com o uso dos meios, desde que os objetivos fossem revolucionários. E, assim, não hesitou em apelar para o banditismo como força auxiliar. E, até mais do que isso, a serviço do grupo e, depois, do partido bolchevique.

Quando se tenta idealizar "o último combate de Lênin" - a ruptura com Stálin, em 1923, e a tentativa de afastá-lo da Secretaria Geral -, é impossível não comentar: pois fora ele mesmo, Lênin, que introduzira o lobo (não propriamente entre "cordeiros", mas…).

A refletir. Quando jovem, Fidel Castro foi uma espécie de gângster, e a última biografia de Mao Tse-tung revela um personagem que tem muito a ver com o banditismo. Que o stalinismo tenha certa afinidade com o gangsterismo não é muito surpreendente nem representa, a rigor, uma informação nova, nos dias de hoje.

Mas o que, sim, deveria ser matéria de reflexão é o uso que o leninismo fez das práticas do gangsterismo. Essa atitude não foi acidental. Ela estava enraizada nessa mistura de neojacobinismo, neonarodnikismo e fria racionalidade capitalista, que é o leninismo. Os resultados, conhecemos.

Infelizmente, como os stalinistas outrora, os nossos neoleninistas preferem não enxergar o que é desagradável. A confusão teórica é o preço dessa política de avestruz.

*RUY FAUSTO é filósofo, professor emérito da USP e lecionou na Universidade de Paris 8. É autor de "Marx - Lógica e Política" (ed. 34).

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