"Socialismo e liberdade"

"Socialismo e liberdade"
"Proletários de todos os países, uni-vos!" (Karl Marx e Friedrich Engels; Manifesto do Partido Comunista)

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O futebol e o baralho

O revolucionário italiano Antonio Gramsci é na minha opinião, o maior teórico do marxismo-leninismo. Não se deixou contaminar pelo esquerdismo, muito menos pelo dogmatismo, e acabou reinterpretando o marxismo-leninismo para a realidade das sociedades capitalistas desenvolvidas(na expressão usada pelo próprio Gramsci, as sociedades de tipo ocidental).

Gramsci é o teórico da revolução socialista no mundo capitalista ocidental,uma revolução que arde em 'fogo lento', onde a disputa da hegemonia na sociedade é fundamental.

[...] no Ocidente, onde a 'sociedade civil' é extremamente articulada com a proteção do 'Estado político', a luta será longa, será uma enervante 'guerra de posição' [...]. É preciso aprender todos os métodos mais elaborados dos adversários, não deixar-se surpreender despreparados ou atrasados nessa revolução que arde em 'fogo lento', abandonar o primitivismo econômico e mecanicista precedente e desenvolver a capacidade de previsão e de guia dos acontecimentos, chamando os intelectuais para colaborar com tal empreendimento histórico e colmatando continuamente as distâncias que se formam entre as linhas estratégicas dos vértices e a capacidade de compreensão e de recepção da base. (Antonio Gramsci)


Com Gramsci, a esquerda socialista ganha uma alternativa real ao modelo stalinista e passa a lutar por um socialismo renovado, um socialismo sem os desvios praticados pelo stalinismo ou pelo trotskismo, um socialismo que não se deixa contaminar pelo dogmatismo e muito menos pelo esquerdismo, um socialismo que busca resgatar o melhor do pensamento marxista.

"Distinguindo-se dos social-democratas que se opuseram à revolução bolchevique e à União Soviética (Kautsky, Bernstein e tantos outros), Gramsci - tal como Rosa Luxemburg -- defende a necessidade da revolução e se solidariza, ainda que criticamente, com seus primeiros passos. Mas, ao mesmo tempo, dissocia-se claramente dos rumos que a União Soviética começou a tomar a partir dos anos 30, quando a estatolatria se tornou "fanatismo teórico" e converteu-se em algo "perpétuo", consolidando assim um "governo dos funcionários" que, ao reprimir a sociedade civil e as possibilidades do autogoverno democrático dos cidadãos, gerou um despotismo burocrático que nada tinha a ver com os ideais emancipadores e libertários do socialismo marxista. (...)

...Gramsci nos propõe um outro modelo de socialismo, um modelo no qual o centro da nova ordem deve residir não no fortalecimento do Estado, mas sim na ampliação da "sociedade civil", de um espaço público não estatal. Na "sociedade regulada" - o belo pseudônimo que encontrou para designar o comunismo --, Gramsci supõe (e volto a citá-lo) que "o elemento Estado-coerção pode ser imaginado como capaz de se ir exaurindo à medida que se afirmam elementos cada vez mais numerosos de sociedade regulada (ou Estado-ético, ou sociedade civil)". Ora, como se sabe, as instituições próprias da sociedade civil são o que Gramsci chama de "aparelhos ''privados'' de hegemonia", aos quais se adere consensualmente; e é precisamente essa adesão consensual o que os distingue dos aparelhos estatais, do "governo dos funcionários", que impõem suas decisões coercitivamente, de cima para baixo. Portanto, afirmar "elementos cada vez mais numerosos" de sociedade civil significa ampliar progressivamente o âmbito de atuação do consenso, ou seja, de uma esfera pública intersubjetivamente construída, fazendo assim com que as interações sociais percam cada vez mais seu caráter coercitivo."

(Carlos Nelson Coutinho; em "Atualidade de Gramsci")


Sobre o pensamento de Antonio Gramsci, eu recomendo a leitura de 'Gramsci - Um Estudo Sobre Seu Pensamento Político', escrito por Carlos Nelson Coutinho e publicado pela editora Civilização Brasileira. Também recomendo a leitura dos 'Cadernos do Cárcere', escritos pelo próprio Gramsci. A edição brasileira dos Cadernos tem 6 volumes e foi publicada pela editora Civilização Brasileira, numa primorosa edição organizada por Carlos Nelson Coutinho, tendo como co-editores Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira.

Abaixo, um texto de Antonio Gramsci, escrito em 1918. Leia e reflita!

O futebol e o baralho

Antonio Gramsci
Tradução: Carlos Nelson Coutinho


Os italianos não gostam muito do esporte. Os italianos preferem, ao esporte, o jogo de baralho. Ao ar aberto, preferem o espaço fechado de um botequim; ao movimento, a imobilidade em torno da mesa.

Observem uma partida de futebol: é um modelo da sociedade individualista. Nela se toma a iniciativa, mas essa é definida pela lei. As personalidades distinguem-se hierarquicamente, mas as distinções não ocorrem segundo o status, mas segundo as específicas capacidades de cada um. Há movimento, competição, luta, mas esses são regulados por uma lei não escrita que se chama "lealdade", continuamente recordada pela presença do árbitro. Paisagem aberta, livre circulação de ar, pulmões sadios, músculos fortes, sempre voltados para a ação.

Um jogo de baralho. Espaço fechado, fumaça, luz artificial. Gritos, punhos na mesa e, com freqüência, na cara do adversário ou... do parceiro. Perverso trabalho do cérebro (!). Desconfiança recíproca. Diplomacia secreta. Cartas marcadas. Estratégia de chutes por baixo da mesa. Uma lei? Onde está a lei que se deve respeitar? Ela varia de lugar a lugar, tem diversas tradições, é ocasião permanente de contestações e litígios.

O jogo de baralho termina freqüentemente com um cadáver e algumas cabeças quebradas. Jamais se ouviu dizer que uma partida de futebol tivesse terminado assim.

Até mesmo nestas atividades marginais dos homens se reflete a estrutura econômico-política dos Estados. O esporte é atividade difundida nas sociedades onde o individualismo econômico do regime capitalista transformou os costumes e, ao lado da liberdade econômica e política, suscitou também a liberdade espiritual e a tolerância em face da oposição.

O jogo de baralho é o tipo de esporte próprio das sociedades atrasadas econômica, política e espiritualmente, onde a forma de convivência civil é caracterizada pelo informante da polícia, pelo policial à paisana, pela carta anônima, pelo culto da incompetência, pelo carreirismo (com os respectivos favores e benesses do deputado).
O esporte gera, mesmo em política, o conceito de "jogo leal". O baralho produz os senhores que põem pela porta afora o operário que, na discussão livre, ousou contradizer suas opiniões.

Texto não assinado, publicado em Avanti!, 26 ago. 1918, na coluna "Sotto la Mole". Agora em 'Antonio Gramsci. Escritos políticos'. Organização, introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, v. 1, p. 209.

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