"Socialismo e liberdade"

"Socialismo e liberdade"
"Proletários de todos os países, uni-vos!" (Karl Marx e Friedrich Engels; Manifesto do Partido Comunista)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Não há emoção no Estado

Não há emoção no Estado
Frei Betto *

Época de eleição é época de desvarios. A razão costuma entrar em férias e a sensibilidade fica à flor da pele. Em família e no trabalho, no clube e na igreja, todos manifestam opiniões sobre articulações políticas e candidatos.
O tom varia do palavrão a desqualificar toda a árvore genealógica do candidato à veneração acrítica de quem o julga perfeito. A língua se espicha em sete léguas para difamar ou louvar políticos. Marido briga com a mulher, pai com o filho, amigo com amigo, cada um convencido de que possui a melhor análise sobre os candidatos... e todos parecem ignorar que vivemos numa relativa democracia em que reina a diversidade de forças políticas, embora impere a ideologia das elites dominantes.

Há um terceiro grupo que insiste em se manter indiferente ao período eleitoral, embora não o consiga em relação aos candidatos, todos eles considerados corruptos, mentirosos, aproveitadores e/ou demagogos.

Haja coração!

O problema é que não há saída: estamos todos sujeitos ao Estado. E este é governado pelo partido vitorioso nas eleições. Portanto, ficar indiferente é uma forma de passar cheque em branco, assinado e de valor ilimitado, a quem governa. E tanto o governo quanto o Estado, com o perdão da redundância, são absolutamente indiferentes à nossa indiferença e aos nossos protestos individuais.

É compreensível uma pessoa não gostar de ópera, jiló, viagem de avião ou da cor marrom. E mesmo de política. Impossível é ignorar que todos os aspectos de nossa existência, do primeiro respiro ao último suspiro, têm a ver com política.

Já a classe social em que cada um de nós nasceu decorre da política vigente no país. Houvesse menos injustiça e mais partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, ninguém nasceria entre a miséria e a pobreza. Como nenhum de nós escolheu a família e a classe social em que veio a este mundo, somos todos filhos da loteria biológica. Nossa condição social de origem resulta de mero acaso. E não deveria ser considerado privilégio por quem nasceu nas classes média e rica, e sim dívida social para com aqueles que não tiveram a mesma sorte.

Somos ministeriados do nascimento à morte. Ao nascer, o registro vai parar no Ministério da Justiça. Vacinados, vamos ao Ministério da Saúde; ao ingressar na escola, ao da Educação; ao arranjar emprego, ao do Trabalho; ao tirar carteira de motorista, ao das Cidades; ao aposentar-se, ao da Previdência Social; ao morrer, retornamos ao Ministério da Justiça. E nossas condições de vida, como renda e alimentação, dependem dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, e do modo como o Banco Central administra a moeda nacional e o sistema financeiro.

Em tudo há política. Para o bem ou para o mal. Posso não saber o que a política tem a ver com a conta do supermercado ou o valor da matrícula escolar. Muitos ignoram que a política se faz presente até no calendário. Não que determine as estações do ano, embora tenha tudo a ver com os efeitos, como inundações, secas e desabamentos. Já reparou que dezembro, o último mês do ano, deriva de dez? Novembro de nove, outubro de oito, setembro de sete?

Outrora o ano era de dez meses. O imperador Júlio César decidiu acrescentar um mês em sua homenagem. Assim nasceu julho. Seu sucessor, Augusto, não quis ficar atrás. Criou agosto. Como os meses se sucedem na alternância 31/30, Augusto não admitiu que seu mês tivesse menos dias que o do antecessor. Obrigou os astrônomos da corte a equipararem agosto e julho em 31 dias. Eles não se fizeram de rogados: arrancaram um dia de fevereiro e resolveram a questão.

O Brasil será, a partir de 1º de janeiro de 2011, o resultado das eleições de outubro. Para melhor ou para pior. E os que irão governá-lo serão escolhidos pelo voto de cada um de nós. E graças aos impostos que pagamos eles irão administrar - bem ou mal - os bilhões arrecadados pelo fisco, incluídos os salários dos políticos e o custo de seus gabinetes e respectivas mordomias.

Faça como o Estado: deixe de lado a emoção e pense com a razão. As instituições públicas não têm vida própria. São movidas por políticos e pessoas indicadas por eles. Todos esses funcionários públicos, a começar do presidente da República, são nossos empregados. A nós devem prestar contas. Temos o direito de cobrar, exigir, pressionar, reivindicar, e eles o dever de comprovar como respondem às nossas expectativas.

Convença-se disto: a autoridade é a sociedade civil. Exerça-a. Não dê seu voto a corruptos nem se deixe enganar pela propaganda eleitoral. Vote no seu futuro. Vote na justiça social, no direito dos pobres à dignidade, na soberania nacional.

* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Quem tem medo da democracia?

Quem tem medo da democracia?
Emir Sader*

O momento mais trágico da história brasileira -o do golpe de 1964 e da instauração do pior regime político que o Brasil já teve, a ditadura militar- foi o momento da verdade da democracia. O momento revelou quem estava a favor e quem estava contra a democracia. E quem pregava e apoiava a ditadura. Foi um divisor definitivo de águas. O resto são palavras que o vento leva. A posição diante da ditadura e da democracia, na hora em que não havia outra alternativa, em que a democracia estava em risco grave -como se viu depois- foi decisiva para definir que é democrata e quem é ditatorial no Brasil.

Toda a velha imprensa, que segue ai -FSP, Globo, Estadão, Veja- pregou e apoiou o golpe militar, compactuou com a destruição da democracia no Brasil e enriqueceu com isso. Compactuou inclusive com a destruição da Última Hora, o único jornal que sempre resistiu à ditadura. O mesmo aconteceu com a maior parte da elite política da época - uma parte da qual ainda anda por aí, quase todos dando continuidade ao mesmo papel de inimigos da democracia, mesmo se disfarçados de democratas.

A história contemporânea é continuação daquela circunstância e da ditadura que ela instaurou. Se o amplo apoio ao governo Lula provêm, no essencial, em ter, pela primeira vez, diminuído a desigualdade, a injustiça e a exclusão social no Brasil, isto se deve, em grande parte, à monstruosa desigualdade que o modelo implantado pela ditadura -fundado na liberdade total ao capital e no arrocho dos salários, acompanhado da intervenção em todos os sindicatos- promoveu.

Da mesma forma que a polarização atual da política brasileira se centra de novo em torno da alternativa democracia/ditadura. Como naquela época, ambos os lados dizem falar em nome da democracia. Como naquela época, toda aquela imprensa e parte da elite política tradicional, falam da democracia -que eles mesmos ajudaram a massacrar ao pregar e apoiar a instauração da ditadura no Brasil-, mas representam a antidemocracia, representam os interesses tradicionais das elites, que resistem à imensa democratização por que passa o Brasil.

O golpe de 1964 foi realizado para evitar a continuidade de um processo de ampla democratização por que passava o Brasil. A política econômica do governo Jango, a extensão da sindicalização -aos funcionários públicos, aos trabalhadores rurais-, as lutas populares por mais direitos, o começo de reforma agrária, incorporavam crescentes setores populares a direitos essências. Mas isso não era funcional aos interesses das elites dirigentes, comprometidas com interesses econômicos voltados para o consumo das camadas mais ricas da sociedade -a indústria automobilística era o eixo da economia- e para a exportação, em detrimento do mercado interno de consumo popular.

O golpe e a ditadura militar fizeram um mal profundo para o Brasil, mas favoreceram o capitalismo fundado nas grandes corporações nacionais e internacionais, que lucraram como nunca - entre elas os próprios grupos econômicos da mídia. A gritaria de que a democracia estava em perigo, em 1964, serviu para acobertar a ditadura e o regime mais antipopular que já tivemos.

Agora o quadro se repete, já não mais como tragédia, mas como farsa. Vivemos de novo um processo de ampla e profunda democratização da sociedade brasileira. Dezenas de milhões de brasileiros, que nunca haviam tido acesso aos bens mínimos à sobrevivência, adquirem o direito de tê-los, para viver com um mínimo de dignidade. O mercado interno de consumo popular passou a ser elemento integrante essencial do modelo econômico.

A sociedade brasileira, que era a mais desigual da América Latina -que, por sua vez, é o continente mais desigual do mundo-, pela primeira vez, começou a ser menos desigual, menos injusta. Isso incomoda às elites conservadoras brasileiras. Já não podem dispor do Estado brasileiro -e das empresas estatais- como sempre dispuseram. Os donos de jornais, rádios e TVs, já não têm um presidente da república que almoce e jante com eles, com todas as promiscuidades decorrentes daí.

Sentem que o poder se lhes escapa das mãos. Que um presidente -nordestino e operário de origem- conquistou um prestigio e um apoio popular, apesar deles. Tem medo do povo. Quando se dão conta da democratização que começou a acontecer, logo retomam os seus fantasmas da guerra fria e gritam que a democracia está em perigo, quando o que está em perigo são os seus privilégios.

São os mesmos que confundiam seus privilégios com democracia -porque assimilavam democracia com regime que protegia seus interesses-, que agora tem medo da democracia, porque sentem que perdem privilégios. Privilégios de serem os únicos formadores de opinião publica, de serem os que filtravam quem podia ocupar a presidência republica e os outros cargos públicos importantes. Privilégios de terem acesso exclusivo a viajar, a comprar certos bens, a ir ao teatro. Privilégios de decidir as políticas governamentais, de eleger e destituir presidentes.

O que está em perigo são os privilégios das minorias. O que está em desenvolvimento no Brasil é o mais amplo processo de democratização que o país já conheceu. Um processo que apenas começa, que tem que quebrar o monopólio do dinheiro (poder do capital financeiro), da terra (poder dos latifundiários) e o poder da palavra (poder da mídia monopolista), entre outros, para que nos tornemos realmente um país justo, solidário e soberano.

Quem tem medo da democracia? As elites que sempre detiveram privilégios, que agora começam a perdê-los. O povo, os que têm consciência social, democrática, não tem nada a temer. Tem um mundo -o outro mundo possível- a ganhar.


* Emir Sader é filósofo, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas.