"Socialismo e liberdade"

"Socialismo e liberdade"
"Proletários de todos os países, uni-vos!" (Karl Marx e Friedrich Engels; Manifesto do Partido Comunista)

terça-feira, 12 de junho de 2012

Insensibilidade econômica e relações desumanas

Insensibilidade econômica e relações desumanas
Marcus Eduardo de Oliveira*

Devem os trabalhadores e consumidores atender as necessidades do mercado ou é o mercado que deve assegurar às necessidades de trabalhadores e consumidores? As pessoas devem estar a serviço da economia ou é a economia que deve se pôr a serviço das pessoas? Pela lógica econômica atual devemos considerar que a acumulação de bens leva à satisfação e ao prazer ou a busca pelo prazer e pela satisfação envolvem outras variáveis? O ritmo econômico atual é sustentável ou já se esgotou? Esse mesmo ritmo econômico caminha para aprofundar a concentração de renda ou para atenuar as gritantes desigualdades sociais e econômicas?

Diante dessas inquietações, percebemos que em termos econômicos sempre prevaleceu a inversão de valores. De um lado busca-se o crescimento econômico, pouco importando se, do outro lado, esse crescimento irá beneficiar a maioria. Certamente, isso apenas contribui para afastar a práxis econômica da busca por uma economia mais solidária e menos desigual.

Nossa premissa básica é que os sistemas econômicos devem promover prioritariamente o bem-estar social. Assim, entendemos o primeiro e mais importante objetivo da economia, corroborando, com a análise de Colin Clark quando afirma que "O objetivo da economia não é a produção de riqueza, mas proporcionar bem-estar aos indivíduos”.

No entanto, o discurso econômico atual se apresenta de forma insensível: prevalece a ideia de que os ganhos devem acontecer no curto prazo, independente se os recursos naturais "responderão” afirmativamente pelo crescimento avançado; independente se atualmente mais de 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo (um em cada seis seres humanos passa fome atualmente); independente se a miséria e a indigência grassam a passos largos em várias regiões do planeta.

É tão grande a inversão de valores econômicos que as contradições que se apresentam mediante tais inversões podem soar aos mais desavisados como inverdades. Nesse pormenor, muitos são os exemplos de inversões de valores econômicos que respondem, de um lado, pelo crescimento da economia, enquanto, do outro, as condições sociais se deterioram.

Insensibilidade econômica

A nação que mais produz alimentos no mundo, os Estados Unidos, segundos dados do Conselho Nacional Americano sobre a Terceira Idade, constatou, por exemplo, que alguns poucos anos atrás quase 17 milhões de idosos passavam fome nesse país. O PIB mundial ronda a casa dos 75 trilhões de dólares; no entanto, somente devido aos efeitos da poluição do ar (todos os anos são liberadas mais de 25 bilhões de toneladas métricas de dióxido de carbono no ar), a Organização Mundial de Saúde (OMS) relata que três milhões de pessoas morrem a cada ano. Apenas 13 bilhões de dólares por ano (pouco mais de 1 bilhão por mês) seriam suficientes para permitir que os países pobres alimentem seis milhões de crianças que correm o risco de morrer de inanição a cada ano. Entretanto, somente os EUA gastaram na última Guerra do Iraque o equivalente a quase 1 bilhão de dólares por dia (isso mesmo: quase 1 bilhão de dólares por dia!). Somente em um ano foram gastos 295 bilhões de dólares nessa guerra estúpida que fez mais de 75 mil mortos. Isso, por sua vez, não "impediu” que a FAO (Fundo para Alimentação e Agricultura, da ONU) divulgasse a macabra cifra de que "5 milhões de crianças morrem todos os anos em virtude da fome” – isso equivale, na média, a um óbito a cada cinco segundos.

A cada dia que passa quase 15 mil crianças com menos de cinco anos morrem por fome ou problemas decorrentes disso que hoje são denominados de "insegurança alimentar”. Isso tudo apesar da agricultura estar produzindo 17% mais de calorias por pessoa, por comparação ao que se produzia há três décadas, e mesmo tendo em conta que a população mundial aumentou 70% nesse período. Anualmente morrem 1,8 milhão de pessoas de diarreia e gastrenterite por consumo de água não potável. Deles, 90% são menores de cinco anos e estão localizados nos países em desenvolvimento. Esses são alguns dos muitos exemplos de verdadeiras inversões de valores não só econômicos, mas morais, éticos?

Infelizmente, essas inversões de valores não param nos exemplos aqui citados. Segundo o World Military and Social Expenditures, o custo de um míssil balístico intercontinental dos EUA daria para alimentar cinquenta milhões de crianças, construir 160 mil escolas ou ainda abrigar 340 mil centros de saúde. Para cada 1 dólar que a ONU gasta em missões de paz, o mundo gasta outros 2.000 dólares em guerras e nos preparativos dessas.

De acordo com relatórios produzidos pelos técnicos da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o custo de um submarino nuclear forneceria água às regiões rurais a um custo baixo e serviços de saneamento para 48 milhões de pessoas. Ainda segundo essa Instituição, o custo de apenas onze bombardeiros construídos para evitar radares proporcionaria quatro anos ininterruptos de instrução escolar fundamental a 135 milhões de crianças.

No entanto, o modelo econômico praticado por todas as nações desenvolvidas e as que se encontram em estágio de desenvolvimento não é sensível com o critério social. O que importa é a produção, as vendas, o retorno financeiro, os exorbitantes lucros, a valorização das ações no mercado acionário. Pouco importa que, na outra ponta, o meio ambiente esteja ficando às mínguas em troca de uma produção avassaladora e ambientalmente destruidora e a vida, de todos, esteja correndo sérios riscos.

E a insensibilidade continua. Estudo patrocinado pelas Organizações das Nações Unidas intitulado Avaliação Ecossistêmica do Milênio, de 2005, informa que ao longo dos últimos 50 anos, a atividade humana esgotou 60% dos pastos, florestas, terras cultiváveis, rios e lagos do mundo. Atualmente, devido as temperaturas mais elevadas cuja responsabilidade recai sobre as emissões de gases do efeito estufa, o derretimento da calota polar das geleiras da Groelândia estão deslizando para o oceano duas vezes mais rápida do que ocorreu nos últimos cinco anos extinguindo, assim, a vida de vários ursos polares que estão se afogando. A queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural) em veículos, usinas termoelétricas, indústrias e equipamentos de uso doméstico, por exemplo, emite dióxido de carbono, o gás que mais colabora para a intensificação desse efeito estufa.

Relações desumanas: os números da concentração econômica

Como a lógica econômica que prescreve o lucro acima de tudo e de todos sempre prevalece, as relações tendem a ficar, por conseguinte, cada vez mais desumanas e excludentes. Segundo o Banco Mundial, atualmente 2,8 bilhões de pessoas sobrevivem com menos de US$ 2 por dia. E 1,2 bilhão, com menos de US$ 1 por dia. Dois quintos da riqueza mundial estão concentrados nas mãos de 37 milhões de indivíduos, ou 1% da população adulta segundo estudo compilado no recente livro Personal Wealth from a Global Perspective (Riqueza Pessoal a partir de uma Perspectiva Global).

Desse estudo destaca-se ainda que apenas dois países-Estados Unidos e Japão- concentram 64,3% dos indivíduos entre o grupo de 1% mais ricos do mundo. O Brasil tem 0,6% dos indivíduos nesse grupo, que representam aqueles com patrimônio superior a US$ 512,4 mil.

Entre os 10% mais pobres do mundo, 26,5% estão na Índia, 6,4% na China e 2,2% no Brasil. Os Estados Unidos têm apenas 0,2% de sua população nesse grupo, com patrimônio total inferior a US$ 178.

Os indianos, que são 15,4% da população mundial, detêm 0,9% da riqueza global. Na África, que tem 10,2% da população, está apenas 1% da riqueza mundial. Na outra ponta, a América do Norte, com 6,1% da população mundial, concentra 34,4% da riqueza, enquanto a Europa, que tem 14,9% da população, detém 29,6% da riqueza. O grupo de países ricos da Ásia e do Pacífico, que inclui o Japão, tem apenas 5% da população mundial, mas concentra 24,1% da riqueza global.

O poder das corporações farmacêuticas

A inversão de valores econômicos passa ainda pela questão de se evitar a cura de certas doenças em prol dos ganhos exorbitantes das gigantes corporações farmacêuticas. Vejamos, nesse pormenor, o conhecido caso da "casca de bétula”. Sabe-se há séculos que o chá feito a partir da casca de bétula, ou vidoeiro, tem poderes curativos sobre o herpes, por exemplo, além de ajudar na digestão. Mas, como as corporações farmacêuticas dominam o mercado, elas tem sido radicalmente contra medicamentos de baixo custo como as plantas medicinais, em especial, contra a casca de bétula que continua "impedida” assim de ganhar as prateleiras das farmácias.

Na África do Sul o drama é ainda pior. Exatamente 39 "gigantes” farmacêuticas impedem que esse país importe medicamentos ou os produza a baixo custo para tratar dos aidéticos. Mesmo com uma lei que regulamenta a importação de remédios para esses doentes, aprovada pelo então presidente Nelson Mandela, em 1997, os "grandes monopólios farmacêuticos”entraram, desde essa época, com ação na Alta Corte de Pretória impedindo a aplicação da lei. Para as "gigantes” do setor farmacêutico não importa a continuidade da vida, o que importa são os lucros. Não é por acaso então que a Aids, na África do Sul, já acometeu quase 5 milhões de pessoas.


*Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor universitário. Mestre pela USP em Integração da América Latina e Especialista em Política Internacional

A terceira crise do capitalismo

A terceira crise do capitalismo
Frei Betto: Escritor e assessor de movimentos sociais


A atual crise econômica do capitalismo manifestou seus primeiros sinais nos EUA em 2007 e já faz despontar no Brasil sinais de incertezas.

O sistema é um gato de sete fôlegos. No século passado, enfrentou duas grandes crises. A primeira, no início do século XX, nos primórdios do imperialismo, ao passar do laissez-faire (liberalismo econômico) à concentração do capital por parte dos monopólios. A guerra econômica por conquista de mercados ensejou a bélica: a Primeira Guerra Mundial. Resultou numa "saída” à esquerda: a Revolução Russa de 1917.

Em 1929, nova crise, a Grande Depressão. Da noite para o dia milhares de pessoas perderam seus empregos, a Bolsa de Nova York quebrou, a recessão se estendeu por longo período, com reflexos em todo o mundo. Desta vez a "saída” veio pela direita: o nazismo. E, em consequência, a Segunda Guerra Mundial.

E agora, José?

Essa terceira crise difere das anteriores. E surpreende em alguns aspectos: os países que antes compunham a periferia do sistema (Brasil, China, Índia, Indonésia), por enquanto estão melhor que os metropolitanos. Neste ano, o crescimento dos países latino-americanos deve superar o dos EUA e da Europa. Deste lado do mundo são melhores as condições para o crescimento da economia: salários em elevação, desemprego em queda, crédito farto e redução das taxas de juros.

Nos países ricos se acentuam o déficit fiscal, o desemprego (24,3 milhões de desempregados na União Europeia), o endividamento dos Estados. E, na Europa, parece que a história –para quem já viu este filme na América Latina– está sendo rebobinada: o FMI passa a administrar as finanças dos países, intervém na Grécia e na Itália e, em breve, em Portugal, e a Alemanha consegue, como credora, o que Hitler tentou pelas armas – impor aos países da zona do euro as regras do jogo.

Até agora não há saída para esta terceira crise. Todas as medidas tomadas pelos EUA são paliativas e a Europa não vê luz no fim do túnel. E tudo pode se agravar com a já anunciada desaceleração do crescimento de China e consequente redução de suas importações. Para a economia brasileira será drástico.

O comércio mundial já despencou 20%. Há progressiva desindustrialização da economia, que já afeta o Brasil. O que sustenta, por enquanto, o lucro das empresas é que elas operam, hoje, tanto na produção quanto na especulação. E, via bancos, promovem a financeirização do consumo. Haja crédito! Até que a bolha estoure e a inadimplência se propague como peste.

A "saída” dessa terceira crise será pela esquerda ou pela direita? Temo que a humanidade esteja sob dois graves riscos. O primeiro, já é óbvio: as mudanças climáticas. Produzidas inclusive pela perda do valor de uso dos alimentos, agora sujeitos ao valor de compra estabelecido pelo mercado financeiro.

Há uma crescente reprimarização das economias dos chamados emergentes. Países, como o Brasil, regridem no tempo e voltam a depender das exportações de commodities (produtos agrícolas, petróleo e minério de ferro, cujos preços são determinados pelas transnacionais e pelo mercado financeiro).

Neste esquema global, diante do poder das gigantescas corporações transnacionais, que controlam das sementes transgênicas aos venenos agrícolas, o latifúndio brasileiro passa a ser o elo mais fraco.

O segundo risco é a guerra nuclear. As duas crises anteriores tiveram nas grandes guerras suas válvulas de escape. Diante do desemprego massivo, nada como a indústria bélica para empregar trabalhadores desocupados. Hoje, milhares de artefatos nucleares estão estocados mundo afora. E há inclusive minibombas nucleares, com precisão para destruições localizadas, como em Hiroshima e Nagasaki.

É hora de rejeitar a antecipação do apocalipse e reagir. Buscar uma saída ao sistema capitalista, intrinsecamente perverso, a ponto de destinar trilhões para salvar o mercado financeiro e dar as costas aos bilhões de serem humanos que padecem entre a pobreza e a miséria.

Resta, pois, organizar a esperança e criar, a partir de ampla mobilização, alternativas viáveis que conduzam a humanidade, como se reza na celebração eucarística, "a repartir os bens da Terra e os frutos do trabalho humano”.


*Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser, de "Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entre outros livros.

domingo, 26 de dezembro de 2010

O sequestro das Luzes do Natal e a escuridão

O sequestro das Luzes do Natal e a escuridão
Jung Mo Sung *

As propagandas de alguns dos maiores bancos privados do Brasil para esta época de Natal nos ensinam que devemos lutar contra o consumismo desenfreado, usar dinheiro com consciência, saber que o dinheiro é um instrumento, buscar a verdadeira felicidade, etc. É o espírito de Natal invadindo espaços que normalmente são dominados por ganância de mais dinheiro, ostentação e eficiência econômica acima de tudo.

Essas propagandas me fazem pensar: será que na época de Natal ocorre uma "conversão radical" entre os grandes capitalistas e executivos e eles percebem que a vida é mais do que a busca ilimitada de riqueza e a sua ostentação? Uma conversão que, mesmo sendo por muito pouco tempo, mostraria o "poder" do espírito do Natal? Gostaria de acreditar, mas a vida real me lembra que não devemos confundir retóricas de propaganda com as reais intenções dos capitalistas e a lógica econômica capitalista.

É claro que deve haver algum grande empresário ou executivo desejando que a vida realmente seja assim, com o uso consciente do dinheiro, consumo sustentável, justiça social acima da acumulação da riqueza nas mãos de poucos, etc. Mas, ele também vai tomar consciência de que uma coisa é propaganda do final de ano e a outra é a "vida dura e crua" dos negócios.

A apropriação ou o seqüestro do "espírito de Natal" pelas propagandas das grandes empresas nos lembram que não basta líderes de igrejas ou teólogos/as propagarem discursos enaltecendo o espírito do Natal, pregando que todos nós deveríamos viver de acordo com os valores natalino. Esses discursos, por mais bonitos e tocantes que possam ser, não fazem mais diferença no e para o mundo. Tudo ficou pasteurizado! E quando o anúncio da Boa Nova não faz mais diferença, não provoca mudança e não produz uma novidade, não é mais Evangelho.

Este é um dos grandes desafios do cristianismo em uma sociedade injusta que se legitima e funciona em nome dos valores ocidentais e cristãos. Esta identificação é tão profunda que a Igreja Católica, ou pelo menos a sua hierarquia que pensa que fala em nome de toda a Igreja Católica, luta para que os prédios das instituições públicas, as que representam o Estado e a sociedade, mantenham dentro delas o crucifixo. Isto para lembrar a todos/as que vivemos em uma sociedade "fundada" no cristianismo.

Os presépios luxuosos espalhados pelos pontos centrais das cidades e em espaços comerciais de grande circulação também são expressões dessa perda da diferença. Mais do que a perda da diferença entre o anúncio da boa-nova aos pobres e o anúncio dos grandes feitos poderosos do Império, ocorreu entre nós uma profunda inversão. Esses presépios luxuosos, que vemos mesmo dentro das igrejas, pretendem representar um fato dramático, oposto: o nascimento de um menino pobre, de uma família pobre, em um estábulo no meio dos animais.

Palavras românticas, embrulhadas em palavras espiritualizantes e religiosas, que tocam nossos corações são apropriadas para este tempo de Natal. Por isso elas fazem muito sucesso. Mas, quando até os grandes bancos, que estão na ponta do capitalismo global, as utilizam, é tempo de procurarmos novas palavras e imagens! Se não, a luz que nasce da manjedoura se misturará com as luzes potentes das grandes árvores de Natal ou decorações dos bancos e perderá a sua diferença, o seu brilho especial.

Cristianismo só manterá a sua relevância no mundo de hoje se for capaz de manter a sua diferença! Não uma diferença que o faça se sentir especial, superior aos demais, mas sim uma diferença que sempre nos mostre que as luzes do Império são como holofotes que iluminam os grandes monumentos e os grandes "sucessos" (financeiros, políticos, religiosos...) e tiram do foco, da nossa vista, os sofrimentos das pessoas marginalizadas que estão abandonadas na escuridão.

Quem só olha para o que o holofote foca, ou busca ser iluminado pelo holofote - a grande tentação, da grandeza, do sucesso e da fama -, fica cego para tudo o que está em sua volta. A nossa diferença deve se manifestar como a pálida luz que vem de uma "manjedoura em Belém" e ilumina a vida das pessoas que vivem e lutam contra a luz que gera a escuridão.

* Jung Mo Sung é Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo. Autor, juntamente com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres".

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Não há emoção no Estado

Não há emoção no Estado
Frei Betto *

Época de eleição é época de desvarios. A razão costuma entrar em férias e a sensibilidade fica à flor da pele. Em família e no trabalho, no clube e na igreja, todos manifestam opiniões sobre articulações políticas e candidatos.
O tom varia do palavrão a desqualificar toda a árvore genealógica do candidato à veneração acrítica de quem o julga perfeito. A língua se espicha em sete léguas para difamar ou louvar políticos. Marido briga com a mulher, pai com o filho, amigo com amigo, cada um convencido de que possui a melhor análise sobre os candidatos... e todos parecem ignorar que vivemos numa relativa democracia em que reina a diversidade de forças políticas, embora impere a ideologia das elites dominantes.

Há um terceiro grupo que insiste em se manter indiferente ao período eleitoral, embora não o consiga em relação aos candidatos, todos eles considerados corruptos, mentirosos, aproveitadores e/ou demagogos.

Haja coração!

O problema é que não há saída: estamos todos sujeitos ao Estado. E este é governado pelo partido vitorioso nas eleições. Portanto, ficar indiferente é uma forma de passar cheque em branco, assinado e de valor ilimitado, a quem governa. E tanto o governo quanto o Estado, com o perdão da redundância, são absolutamente indiferentes à nossa indiferença e aos nossos protestos individuais.

É compreensível uma pessoa não gostar de ópera, jiló, viagem de avião ou da cor marrom. E mesmo de política. Impossível é ignorar que todos os aspectos de nossa existência, do primeiro respiro ao último suspiro, têm a ver com política.

Já a classe social em que cada um de nós nasceu decorre da política vigente no país. Houvesse menos injustiça e mais partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, ninguém nasceria entre a miséria e a pobreza. Como nenhum de nós escolheu a família e a classe social em que veio a este mundo, somos todos filhos da loteria biológica. Nossa condição social de origem resulta de mero acaso. E não deveria ser considerado privilégio por quem nasceu nas classes média e rica, e sim dívida social para com aqueles que não tiveram a mesma sorte.

Somos ministeriados do nascimento à morte. Ao nascer, o registro vai parar no Ministério da Justiça. Vacinados, vamos ao Ministério da Saúde; ao ingressar na escola, ao da Educação; ao arranjar emprego, ao do Trabalho; ao tirar carteira de motorista, ao das Cidades; ao aposentar-se, ao da Previdência Social; ao morrer, retornamos ao Ministério da Justiça. E nossas condições de vida, como renda e alimentação, dependem dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, e do modo como o Banco Central administra a moeda nacional e o sistema financeiro.

Em tudo há política. Para o bem ou para o mal. Posso não saber o que a política tem a ver com a conta do supermercado ou o valor da matrícula escolar. Muitos ignoram que a política se faz presente até no calendário. Não que determine as estações do ano, embora tenha tudo a ver com os efeitos, como inundações, secas e desabamentos. Já reparou que dezembro, o último mês do ano, deriva de dez? Novembro de nove, outubro de oito, setembro de sete?

Outrora o ano era de dez meses. O imperador Júlio César decidiu acrescentar um mês em sua homenagem. Assim nasceu julho. Seu sucessor, Augusto, não quis ficar atrás. Criou agosto. Como os meses se sucedem na alternância 31/30, Augusto não admitiu que seu mês tivesse menos dias que o do antecessor. Obrigou os astrônomos da corte a equipararem agosto e julho em 31 dias. Eles não se fizeram de rogados: arrancaram um dia de fevereiro e resolveram a questão.

O Brasil será, a partir de 1º de janeiro de 2011, o resultado das eleições de outubro. Para melhor ou para pior. E os que irão governá-lo serão escolhidos pelo voto de cada um de nós. E graças aos impostos que pagamos eles irão administrar - bem ou mal - os bilhões arrecadados pelo fisco, incluídos os salários dos políticos e o custo de seus gabinetes e respectivas mordomias.

Faça como o Estado: deixe de lado a emoção e pense com a razão. As instituições públicas não têm vida própria. São movidas por políticos e pessoas indicadas por eles. Todos esses funcionários públicos, a começar do presidente da República, são nossos empregados. A nós devem prestar contas. Temos o direito de cobrar, exigir, pressionar, reivindicar, e eles o dever de comprovar como respondem às nossas expectativas.

Convença-se disto: a autoridade é a sociedade civil. Exerça-a. Não dê seu voto a corruptos nem se deixe enganar pela propaganda eleitoral. Vote no seu futuro. Vote na justiça social, no direito dos pobres à dignidade, na soberania nacional.

* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Quem tem medo da democracia?

Quem tem medo da democracia?
Emir Sader*

O momento mais trágico da história brasileira -o do golpe de 1964 e da instauração do pior regime político que o Brasil já teve, a ditadura militar- foi o momento da verdade da democracia. O momento revelou quem estava a favor e quem estava contra a democracia. E quem pregava e apoiava a ditadura. Foi um divisor definitivo de águas. O resto são palavras que o vento leva. A posição diante da ditadura e da democracia, na hora em que não havia outra alternativa, em que a democracia estava em risco grave -como se viu depois- foi decisiva para definir que é democrata e quem é ditatorial no Brasil.

Toda a velha imprensa, que segue ai -FSP, Globo, Estadão, Veja- pregou e apoiou o golpe militar, compactuou com a destruição da democracia no Brasil e enriqueceu com isso. Compactuou inclusive com a destruição da Última Hora, o único jornal que sempre resistiu à ditadura. O mesmo aconteceu com a maior parte da elite política da época - uma parte da qual ainda anda por aí, quase todos dando continuidade ao mesmo papel de inimigos da democracia, mesmo se disfarçados de democratas.

A história contemporânea é continuação daquela circunstância e da ditadura que ela instaurou. Se o amplo apoio ao governo Lula provêm, no essencial, em ter, pela primeira vez, diminuído a desigualdade, a injustiça e a exclusão social no Brasil, isto se deve, em grande parte, à monstruosa desigualdade que o modelo implantado pela ditadura -fundado na liberdade total ao capital e no arrocho dos salários, acompanhado da intervenção em todos os sindicatos- promoveu.

Da mesma forma que a polarização atual da política brasileira se centra de novo em torno da alternativa democracia/ditadura. Como naquela época, ambos os lados dizem falar em nome da democracia. Como naquela época, toda aquela imprensa e parte da elite política tradicional, falam da democracia -que eles mesmos ajudaram a massacrar ao pregar e apoiar a instauração da ditadura no Brasil-, mas representam a antidemocracia, representam os interesses tradicionais das elites, que resistem à imensa democratização por que passa o Brasil.

O golpe de 1964 foi realizado para evitar a continuidade de um processo de ampla democratização por que passava o Brasil. A política econômica do governo Jango, a extensão da sindicalização -aos funcionários públicos, aos trabalhadores rurais-, as lutas populares por mais direitos, o começo de reforma agrária, incorporavam crescentes setores populares a direitos essências. Mas isso não era funcional aos interesses das elites dirigentes, comprometidas com interesses econômicos voltados para o consumo das camadas mais ricas da sociedade -a indústria automobilística era o eixo da economia- e para a exportação, em detrimento do mercado interno de consumo popular.

O golpe e a ditadura militar fizeram um mal profundo para o Brasil, mas favoreceram o capitalismo fundado nas grandes corporações nacionais e internacionais, que lucraram como nunca - entre elas os próprios grupos econômicos da mídia. A gritaria de que a democracia estava em perigo, em 1964, serviu para acobertar a ditadura e o regime mais antipopular que já tivemos.

Agora o quadro se repete, já não mais como tragédia, mas como farsa. Vivemos de novo um processo de ampla e profunda democratização da sociedade brasileira. Dezenas de milhões de brasileiros, que nunca haviam tido acesso aos bens mínimos à sobrevivência, adquirem o direito de tê-los, para viver com um mínimo de dignidade. O mercado interno de consumo popular passou a ser elemento integrante essencial do modelo econômico.

A sociedade brasileira, que era a mais desigual da América Latina -que, por sua vez, é o continente mais desigual do mundo-, pela primeira vez, começou a ser menos desigual, menos injusta. Isso incomoda às elites conservadoras brasileiras. Já não podem dispor do Estado brasileiro -e das empresas estatais- como sempre dispuseram. Os donos de jornais, rádios e TVs, já não têm um presidente da república que almoce e jante com eles, com todas as promiscuidades decorrentes daí.

Sentem que o poder se lhes escapa das mãos. Que um presidente -nordestino e operário de origem- conquistou um prestigio e um apoio popular, apesar deles. Tem medo do povo. Quando se dão conta da democratização que começou a acontecer, logo retomam os seus fantasmas da guerra fria e gritam que a democracia está em perigo, quando o que está em perigo são os seus privilégios.

São os mesmos que confundiam seus privilégios com democracia -porque assimilavam democracia com regime que protegia seus interesses-, que agora tem medo da democracia, porque sentem que perdem privilégios. Privilégios de serem os únicos formadores de opinião publica, de serem os que filtravam quem podia ocupar a presidência republica e os outros cargos públicos importantes. Privilégios de terem acesso exclusivo a viajar, a comprar certos bens, a ir ao teatro. Privilégios de decidir as políticas governamentais, de eleger e destituir presidentes.

O que está em perigo são os privilégios das minorias. O que está em desenvolvimento no Brasil é o mais amplo processo de democratização que o país já conheceu. Um processo que apenas começa, que tem que quebrar o monopólio do dinheiro (poder do capital financeiro), da terra (poder dos latifundiários) e o poder da palavra (poder da mídia monopolista), entre outros, para que nos tornemos realmente um país justo, solidário e soberano.

Quem tem medo da democracia? As elites que sempre detiveram privilégios, que agora começam a perdê-los. O povo, os que têm consciência social, democrática, não tem nada a temer. Tem um mundo -o outro mundo possível- a ganhar.


* Emir Sader é filósofo, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Caminhos do futuro

Caminhos do futuro
Por Emiliano José

Quase desnecessário dizer que Eric Hobsbawm tem se afirmado como um dos maiores intelectuais do nosso tempo. Por isso, compensa discutir, reverberar a conferência, ou parte dela, publicada pela Carta Maior, no dia 13 de outubro. A fala dele foi feita no primeiro dia do World Political Forum, em Bosco Marengo, na Alexandria. O tema era mais do que próprio para a contemporaneidade: qual futuro depois do comunismo? É, indagação, como deve ser. Peço licença aos leitores para falar um pouco extensivamente dessa fala.

Logo de cara, uma tese forte: todos os países do Leste, e os do Oeste também, devem sair da ortodoxia do crescimento econômico a todo custo e dar mais atenção à equidade social. Os países ex-soviéticos, na visão dele, ainda não superaram as dificuldades da transição para o novo sistema. Diria, de outra maneira, que eles mergulharam desordenadamente na política neoliberal.

O século breve, como ele denomina o século XX, teria sido marcado por um conflito religioso entre ideologias laicas. Só um intelectual do porte de Hobsbawm poderia dizer isso, sem medo. Foi dominado pela contraposição de dois modelos econômicos - o "socialismo", e as aspas são dele, identificado com economias de planejamento central tipo soviético, e o "capitalismo", também devidamente aspeado, que englobava todo o resto.

Essa contraposição nunca foi realista. Todas as economias modernas devem combinar público e privado de vários modos e em vários graus, e de fato fazem isso. Corajosa constatação de Hobsbawm, outra vez. Faz tremer os que copiam fórmulas, à direita e à esquerda. O exclusivismo de um ou de outro faliu. As economias do modelo soviético lá pelos anos 80. As do fundamentalismo de mercado anglo-americano, agora, no setembro passado.

O fim do "socialismo" foi catastrófico. As repercussões seguem até hoje, ao menos nos países da ex-URSS. A China, e lá vem ele com sua ousadia e firmeza intelectual, preferiu outro caminho capitalista, diferente do neoliberalismo, optando pelo modelo mais, como ele diria, "dirigista" das economias "tigres". Abriu caminho, assim para seu gigantesco salto econômico para frente, com muito pouca preocupação e consideração pelas implicações sociais e humanas, e eu completaria, ecológicas. A crise do capitalismo, essa que estamos ainda vivendo, terá conseqüências que ainda não dominamos.

Mesmo que não se saiba, ainda, quais as mudanças que a crise econômica em curso pode provocar, parece não haver dúvida, na visão de Hobsbawm, de que está em curso uma alternância de enormes proporções das velhas economias do Atlântico Norte ao Sul do planeta e principalmente à Ásia Oriental.

No desenvolvimento da conferência, ele chega a uma primeira e fundamental conclusão: não é mais possível acreditar em uma única forma global de capitalismo ou de pós-capitalismo. Delinear a economia do amanhã, no entanto, é, na visão dele, a parte menos relevante a nos preocupar em relação ao futuro. "A diferença crucial entre os sistemas econômicos não reside na sua estrutura, mas sim nas suas prioridades sociais e morais, e estas deveriam portanto ser o argumento principal do nosso debate".

Parece surpreendente, e não parece muito marxista, não? Não parece para os que cultuam dogmas. Ele explica isso ilustrando com dois aspectos que considera importantes. O primeiro é que o fim do socialismo - ele fala em fim do comunismo - implicou o desaparecimento repentino de valores, hábitos e práticas sociais que haviam marcado a vida de gerações inteiras. Foi um inesperado e brusco terremoto social.

Corretamente, ele afirma que serão necessárias diversas décadas antes que as sociedades pós-comunistas encontrem alguma estabilidade no seu modo de viver. E que algumas das conseqüências dessa desagregação social poderão exigir ainda um tempo maior para serem combatidas.

O segundo aspecto, na visão dele, de muita importância, é que tanto a política ocidental do neoliberalismo quanto as políticas pós-comunistas que ela inspirou, subordinaram propositalmente o bem-estar e a justiça social à tirania do PIB. Sempre o maior crescimento econômico possível, deliberadamente inigualitário. Com isso, minaram - e nos ex-países socialistas até destruíram - os sistemas de assistência social, do bem-estar, dos valores e das finalidades públicos.

O objetivo de uma economia não é o ganho. É o bem-estar de toda a população. O crescimento econômico não é um fim. É um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas. Um pensamento que lembra muito Celso Furtado. "Não importa como chamamos os regimes que buscam essa finalidade. Importa unicamente como e com quais prioridades saberemos combinar as potencialidades do setor público e do setor privado nas nossas economias mistas. Essa é a prioridade política mais importante do século XXI."

A alguns a tese de Hobsbawm, aos marxistas ortodoxos, aos que vivem com os olhos no passado, parecerá idealista. Ela, no entanto, corresponde a uma análise muito densa da situação mundial, e consegue postular uma sociedade de bem-estar a partir das potencialidades do setor público e privado, não se rendendo às teses neoliberais, próprias do fundamentalismo de mercado, e nem ao estatismo completo, que levou ao desastre final dos anos 80.

Se olharmos para o Brasil, se olharmos para o projeto que o governo Lula vem desenvolvendo, para o contraponto que se fez ao neoliberalismo do tucanato sem, no entanto, descartar o dinamismo do setor privado, encontraremos muita coisa do que Hobsbawm está defendendo.

Lula tem dito que não quer o crescimento econômico por si só. Quer que ele garanta melhores condições de vida ao nosso povo. Para que consiga tirar as pessoas da miséria absoluta, como já conseguiu com mais de 20 milhões de pessoas.

E este é um governo que tem tentado, das mais variadas formas, constituir novos valores. Sejam os referentes aos negros. Sejam aqueles ligados às mulheres. Aos jovens. Aos homossexuais. O respeito aos movimentos sociais. A difusão de uma idéia de solidariedade social. É só olhar para o Bolsa-Família. Tudo isso representa uma visão política e moral, e aqui no sentido amplo da palavra. Creio que não é por acaso que o mundo tem voltado os olhos para o Brasil. É porque por aqui está se desenhando, ainda em fase inicial, um novo caminho, o da revolução democrática.

A caminhada em direção a uma sociedade cada vez mais justa, cada vez mais igualitária, não é simples. E nem é uma caminhada que se baseie em modelos acabados. Se há a idéia, e há, de uma sociedade socialista, não se pode mais imaginá-la nos termos daquilo que foi construído no século XX.

Há de ser uma proposta, que se vai construindo passo a passo, realizando transformações na vida das pessoas, e que necessariamente comporta a presença de setores não-estatais e privados, tudo subordinado ao interesse público, e onde o Estado continuará a ocupar por muito, muito tempo um papel essencial. E com a democracia sendo o leito fundamental por onde passam essas transformações.

Emiliano José é doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor aposentado da Faculdade de Comunicação, jornalista de carreira e escritor com oito livros publicados. Exerceu recentemente o mandato de deputado federal pelo PT da Bahia.

Publicado no site da Carta Capital (21/10/2009) 

Acabou-se os tempos em que a revolução se dava através de rupturas violentas. Hoje o caminho para o socialismo é processual

Quando fundaram o socialismo científico, os filósofos e revolucionários alemães Karl Marx e Friedrich Engels afirmaram que a história é movida pela luta de classes. Na atual sociedade capitalista, a luta do proletariado contra a burguesia levará a revolução socialista e a destruição do capitalismo. E segundo Marx e Engels, essa revolução será violenta.

Entretanto a história não é estatica, por isso a realidade apontada por Marx e Engels no Manifesto Comunista, publicado em fevereiro de 1848, já não era mais a mesma realidade existente na segunda metade do século XIX. No Livro 1 de O Capital, publicado em 1867, Marx teorizou a respeito da progressiva passagem da exploração do trabalho através da mais-valia absoluta (da redução do salário e do aumento da jornada de trabalho) para a exploração através da mais-valia relativa (do aumento da produtividade), que alterou as condições em que se trava a luta de classes. Como resultado dessa alteração, o filósofo e revolucionário alemão Karl Marx afirmou que era possível uma revolução socialista não violenta, com o proletariado chegando ao poder pelo voto.

Em seu discurso no Congresso de Haia, realizado em 1872, Marx afirmou que nos EUA, na Grã Bretanha, e talvez na Holanda, os trabalhadores poderiam atingir suas metas por meios pacíficos. A possibilidade da transição pacífica, segundo Marx, dependeria das diferentes correlações de força existentes no interior de cada país, do grau de consolidação das instituições e também da resistência oferecida pelas classes dominantes às transformações sociais. Marx sublinhou igualmente, que será a classe operária de cada país que deverá escolher os meios a serem utilizados.

Em 1895, Friedrich Engels escreveu a Introdução para uma nova edição de "Luta de Classes na França", de Marx.

Neste texto, por muitos considerado seu testamento político, Engels parte do reconhecimento de que, em 1848, quando rompeu o movimento revolucionário de fevereiro em Paris, ele e Marx estavam verdadeiramente "fascinados" com a experiência histórica das revoluções francesas anteriores, a de 1789 e 1830, que lhes haviam fornecido uma espécie de “modelo” com o qual representar a “marcha e o caráter da revolução do proletariado”. A história posterior, porém, “não só destruiu o erro em que nos encontrávamos, como também modificou de cima a baixo as condições de luta do proletariado”. Cinqüenta anos depois, ele constataria: “O método de luta de 1848 está hoje antiquado em todos os aspectos”. A história deixara patente que “o estado do desenvolvimento econômico não estava maduro para poder eliminar a produção capitalista”, que demonstrava “grande capacidade de extensão”. E o capitalismo, quanto mais se expandia, mais punha de manifesto as relações de classe que o sustentavam, “criando e fazendo passar ao primeiro plano uma verdadeira burguesia e um verdadeiro proletariado” e, desta forma, injetando inédita intensidade à luta entre as duas classes. Ao final do século, na visão de Engels, havia se organizado “um grande, único e poderoso exército do proletariado, o exército internacional dos socialistas” que, “longe de poder conquistar a vitória em um grande ataque decisivo, teria que avançar lentamente, de posição em posição, em uma luta tenaz e dura”. A época, agora, não era mais das “minorias revolucionárias”, mas das massas; não mais das “barricadas e das lutas de rua", mas das batalhas eleitorais. Engels enfatizaria que os operários alemães, “graças à inteligência com que souberam utilizar o sufrágio universal”, haviam conseguido viabilizar o “crescimento assombroso de seu partido”, que em 1871 obtivera 102.000 votos, passara a 550.000 votos em 1884 e alcançaria quase 2 milhões de votos nas eleições da primeira metade dos anos 90.

O sufrágio universal convertia-se, assim, em uma “arma nova e mais afiada”, posto que permitia aos operários “entrar em contato com as amplas massas do povo” e pôr em ação “um método de luta totalmente novo”, passando a perceber que “as instituições estatais nas quais se organizava a dominação da burguesia ofereciam, à classe operária, novas possibilidades de lutar contra essas mesmas instituições”. Em decorrência, concluiria Engels, os governos burgueses começariam a “temer muito mais a atuação legal do que a atuação ilegal do partido operário, mais os êxitos eleitorais do que os êxitos insurrecionais”. Não deixava de ser uma ironia: “nós, os ‘revolucionários’, os ‘elementos subversivos’, prosperamos muito mais com os meios legais do que com a subversão”, ao ponto dos partidos da ordem “exclamarem desesperados, juntamente com Odilon Barrot, que la légalité nous tue, a legalidade nos mata, ao passo que, da nossa parte, acabamos por adquirir, com esta legalidade, músculos vigorosos e faces coloridas, como se tivéssemos sido alcançados pelo sopro da eterna juventude”.

Engels, enfim, nesse texto verdadeiramente paradigmático, procurava atualizar a estratégia do movimento operário às novas determinações da realidade histórica e às mudanças que se processavam no próprio plano das lutas:

“Se se modificaram as condições da guerra entre as nações, do mesmo modo teriam que se modificar as condições da luta de classes. Acabou a época dos ataques de surpresa, das revoluções feitas por pequenas minorias conscientes que se punham à frente das massas inconscientes. Onde quer que se trate de realizar uma transformação completa da organização social, as massas têm de intervir diretamente, têm de já ter compreendido por si mesmas do que se trata e porque estão dando o sangue e a vida. E para que as massas compreendam o que deve ser feito, é preciso um trabalho longo e perseverante”.

Reiterava-se, assim, uma das grandes teses do marxismo clássico: as formas de luta (pacíficas ou violentas, legais ou ilegais) deveriam ser sempre uma resposta às situações históricas concretas, sendo por elas determinadas.

Tal transição verdadeiramente epocal alterava a qualidade mesma do Estado, que se transformava numa instituição efetivamente complexa, dilatada, invasiva. Fazia-se necessária, portanto, uma nova conceitualização, capaz de possibilitar a apreensão dos novos nexos que se estabeleciam no ampliado plano da atividade estatal. Com o Estado reforçado conectando-se com múltiplas associações particulares e incorporando-as a si, todo o espaço estatal ganhava nova qualidade e o fato mesmo da dominação política era redefinido: a coerção, o “monopólio legítimo da violência”, ação típica da “sociedade política”, tinha de ser cada vez mais sintonizada com a busca de consensos.

(Marco Aurélio Nogueira; em "GRAMSCI E OS DESAFIOS DE UMA POLÍTICA DEMOCRÁTICA DE ESQUERDA")


O revolucionário marxista italiano Antonio Gramsci avançou a reflexão de Engels, analisando a questão do consenso. Assim refundou a teoria política do marxismo, desenvolvendo a teoria da revolução socialista no mundo capitalista desenvolvido, uma revolução que "arde em fogo lento", onde a luta pela hegemonia é essencial para a vitória do proletariado. Assim, a luta de classes deixa de ser uma "guerra de movimento", como era descrita no Manifesto Comunista, e como ocorreu na Rússia semi-feudal dos czares, e se torna uma "guerra de posição", pois o poder não está concentrado apenas nos palácios, e sim disperso na sociedade.

"[...] no Ocidente, onde a 'sociedade civil' é extremamente articulada com a proteção do 'Estado político', a luta será longa, será uma enervante 'guerra de posição' [...]. É preciso aprender todos os métodos mais elaborados dos adversários, não deixar-se surpreender despreparados ou atrasados nessa revolução que arde em 'fogo lento', abandonar o primitivismo econômico e mecanicista precedente e desenvolver a capacidade de previsão e de guia dos acontecimentos, chamando os intelectuais para colaborar com tal empreendimento histórico e colmatando continuamente as distâncias que se formam entre as linhas estratégicas dos vértices e a capacidade de compreensão e de recepção da base." (Antonio Gramsci)


Assim fica claro que ser comunista e revolucionário não é ficar pregando greve geral, usando as eleições apenas para denunciar o capitalismo, promovendo um sectarismo que serve apenas para afastar as massas populares do marxismo. Friedrich Engels reconhece que os tempos das revoluções realizadas por pequenas minorias chegou ao fim, chegando inclusive a afirmar que os revolucionários ganham mais atuando na legalidade e não fora dela. Antes dele, Marx já havia reconhecido que o proletariado podia chegar ao poder pelo voto. A Revolução Russa de 1917 foi um fato histórico isolado, que só foi possível pelo fato daquele país ainda estar vivendo em uma realidade semi-feudal, onde ainda havia o poder autocratico do czar e os trabalhadores viiverem na extrema pobreza, e completamente excluidos do processo político. Por isso Gramsci desenvolve a teoria da revolução socialista no ocidente, onde ocorreu a "socialização da política", afirmando a importância da luta pela hegemonia. Antes de ser dominante, a classe trabalhadora precisa ser dirigente.

A esquerda precisa abandonar a herança autoritária do bolchevismo, assumindo a defesa da democracia como valor universal. Precisa romper com o dogmatismo, conciliando a luta pelo socialismo com a luta em defesa do meio ambiente e do desenvolvimento autossustentável.