"Socialismo e liberdade"

"Socialismo e liberdade"
"Proletários de todos os países, uni-vos!" (Karl Marx e Friedrich Engels; Manifesto do Partido Comunista)

terça-feira, 12 de junho de 2012

Insensibilidade econômica e relações desumanas

Insensibilidade econômica e relações desumanas
Marcus Eduardo de Oliveira*

Devem os trabalhadores e consumidores atender as necessidades do mercado ou é o mercado que deve assegurar às necessidades de trabalhadores e consumidores? As pessoas devem estar a serviço da economia ou é a economia que deve se pôr a serviço das pessoas? Pela lógica econômica atual devemos considerar que a acumulação de bens leva à satisfação e ao prazer ou a busca pelo prazer e pela satisfação envolvem outras variáveis? O ritmo econômico atual é sustentável ou já se esgotou? Esse mesmo ritmo econômico caminha para aprofundar a concentração de renda ou para atenuar as gritantes desigualdades sociais e econômicas?

Diante dessas inquietações, percebemos que em termos econômicos sempre prevaleceu a inversão de valores. De um lado busca-se o crescimento econômico, pouco importando se, do outro lado, esse crescimento irá beneficiar a maioria. Certamente, isso apenas contribui para afastar a práxis econômica da busca por uma economia mais solidária e menos desigual.

Nossa premissa básica é que os sistemas econômicos devem promover prioritariamente o bem-estar social. Assim, entendemos o primeiro e mais importante objetivo da economia, corroborando, com a análise de Colin Clark quando afirma que "O objetivo da economia não é a produção de riqueza, mas proporcionar bem-estar aos indivíduos”.

No entanto, o discurso econômico atual se apresenta de forma insensível: prevalece a ideia de que os ganhos devem acontecer no curto prazo, independente se os recursos naturais "responderão” afirmativamente pelo crescimento avançado; independente se atualmente mais de 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo (um em cada seis seres humanos passa fome atualmente); independente se a miséria e a indigência grassam a passos largos em várias regiões do planeta.

É tão grande a inversão de valores econômicos que as contradições que se apresentam mediante tais inversões podem soar aos mais desavisados como inverdades. Nesse pormenor, muitos são os exemplos de inversões de valores econômicos que respondem, de um lado, pelo crescimento da economia, enquanto, do outro, as condições sociais se deterioram.

Insensibilidade econômica

A nação que mais produz alimentos no mundo, os Estados Unidos, segundos dados do Conselho Nacional Americano sobre a Terceira Idade, constatou, por exemplo, que alguns poucos anos atrás quase 17 milhões de idosos passavam fome nesse país. O PIB mundial ronda a casa dos 75 trilhões de dólares; no entanto, somente devido aos efeitos da poluição do ar (todos os anos são liberadas mais de 25 bilhões de toneladas métricas de dióxido de carbono no ar), a Organização Mundial de Saúde (OMS) relata que três milhões de pessoas morrem a cada ano. Apenas 13 bilhões de dólares por ano (pouco mais de 1 bilhão por mês) seriam suficientes para permitir que os países pobres alimentem seis milhões de crianças que correm o risco de morrer de inanição a cada ano. Entretanto, somente os EUA gastaram na última Guerra do Iraque o equivalente a quase 1 bilhão de dólares por dia (isso mesmo: quase 1 bilhão de dólares por dia!). Somente em um ano foram gastos 295 bilhões de dólares nessa guerra estúpida que fez mais de 75 mil mortos. Isso, por sua vez, não "impediu” que a FAO (Fundo para Alimentação e Agricultura, da ONU) divulgasse a macabra cifra de que "5 milhões de crianças morrem todos os anos em virtude da fome” – isso equivale, na média, a um óbito a cada cinco segundos.

A cada dia que passa quase 15 mil crianças com menos de cinco anos morrem por fome ou problemas decorrentes disso que hoje são denominados de "insegurança alimentar”. Isso tudo apesar da agricultura estar produzindo 17% mais de calorias por pessoa, por comparação ao que se produzia há três décadas, e mesmo tendo em conta que a população mundial aumentou 70% nesse período. Anualmente morrem 1,8 milhão de pessoas de diarreia e gastrenterite por consumo de água não potável. Deles, 90% são menores de cinco anos e estão localizados nos países em desenvolvimento. Esses são alguns dos muitos exemplos de verdadeiras inversões de valores não só econômicos, mas morais, éticos?

Infelizmente, essas inversões de valores não param nos exemplos aqui citados. Segundo o World Military and Social Expenditures, o custo de um míssil balístico intercontinental dos EUA daria para alimentar cinquenta milhões de crianças, construir 160 mil escolas ou ainda abrigar 340 mil centros de saúde. Para cada 1 dólar que a ONU gasta em missões de paz, o mundo gasta outros 2.000 dólares em guerras e nos preparativos dessas.

De acordo com relatórios produzidos pelos técnicos da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o custo de um submarino nuclear forneceria água às regiões rurais a um custo baixo e serviços de saneamento para 48 milhões de pessoas. Ainda segundo essa Instituição, o custo de apenas onze bombardeiros construídos para evitar radares proporcionaria quatro anos ininterruptos de instrução escolar fundamental a 135 milhões de crianças.

No entanto, o modelo econômico praticado por todas as nações desenvolvidas e as que se encontram em estágio de desenvolvimento não é sensível com o critério social. O que importa é a produção, as vendas, o retorno financeiro, os exorbitantes lucros, a valorização das ações no mercado acionário. Pouco importa que, na outra ponta, o meio ambiente esteja ficando às mínguas em troca de uma produção avassaladora e ambientalmente destruidora e a vida, de todos, esteja correndo sérios riscos.

E a insensibilidade continua. Estudo patrocinado pelas Organizações das Nações Unidas intitulado Avaliação Ecossistêmica do Milênio, de 2005, informa que ao longo dos últimos 50 anos, a atividade humana esgotou 60% dos pastos, florestas, terras cultiváveis, rios e lagos do mundo. Atualmente, devido as temperaturas mais elevadas cuja responsabilidade recai sobre as emissões de gases do efeito estufa, o derretimento da calota polar das geleiras da Groelândia estão deslizando para o oceano duas vezes mais rápida do que ocorreu nos últimos cinco anos extinguindo, assim, a vida de vários ursos polares que estão se afogando. A queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural) em veículos, usinas termoelétricas, indústrias e equipamentos de uso doméstico, por exemplo, emite dióxido de carbono, o gás que mais colabora para a intensificação desse efeito estufa.

Relações desumanas: os números da concentração econômica

Como a lógica econômica que prescreve o lucro acima de tudo e de todos sempre prevalece, as relações tendem a ficar, por conseguinte, cada vez mais desumanas e excludentes. Segundo o Banco Mundial, atualmente 2,8 bilhões de pessoas sobrevivem com menos de US$ 2 por dia. E 1,2 bilhão, com menos de US$ 1 por dia. Dois quintos da riqueza mundial estão concentrados nas mãos de 37 milhões de indivíduos, ou 1% da população adulta segundo estudo compilado no recente livro Personal Wealth from a Global Perspective (Riqueza Pessoal a partir de uma Perspectiva Global).

Desse estudo destaca-se ainda que apenas dois países-Estados Unidos e Japão- concentram 64,3% dos indivíduos entre o grupo de 1% mais ricos do mundo. O Brasil tem 0,6% dos indivíduos nesse grupo, que representam aqueles com patrimônio superior a US$ 512,4 mil.

Entre os 10% mais pobres do mundo, 26,5% estão na Índia, 6,4% na China e 2,2% no Brasil. Os Estados Unidos têm apenas 0,2% de sua população nesse grupo, com patrimônio total inferior a US$ 178.

Os indianos, que são 15,4% da população mundial, detêm 0,9% da riqueza global. Na África, que tem 10,2% da população, está apenas 1% da riqueza mundial. Na outra ponta, a América do Norte, com 6,1% da população mundial, concentra 34,4% da riqueza, enquanto a Europa, que tem 14,9% da população, detém 29,6% da riqueza. O grupo de países ricos da Ásia e do Pacífico, que inclui o Japão, tem apenas 5% da população mundial, mas concentra 24,1% da riqueza global.

O poder das corporações farmacêuticas

A inversão de valores econômicos passa ainda pela questão de se evitar a cura de certas doenças em prol dos ganhos exorbitantes das gigantes corporações farmacêuticas. Vejamos, nesse pormenor, o conhecido caso da "casca de bétula”. Sabe-se há séculos que o chá feito a partir da casca de bétula, ou vidoeiro, tem poderes curativos sobre o herpes, por exemplo, além de ajudar na digestão. Mas, como as corporações farmacêuticas dominam o mercado, elas tem sido radicalmente contra medicamentos de baixo custo como as plantas medicinais, em especial, contra a casca de bétula que continua "impedida” assim de ganhar as prateleiras das farmácias.

Na África do Sul o drama é ainda pior. Exatamente 39 "gigantes” farmacêuticas impedem que esse país importe medicamentos ou os produza a baixo custo para tratar dos aidéticos. Mesmo com uma lei que regulamenta a importação de remédios para esses doentes, aprovada pelo então presidente Nelson Mandela, em 1997, os "grandes monopólios farmacêuticos”entraram, desde essa época, com ação na Alta Corte de Pretória impedindo a aplicação da lei. Para as "gigantes” do setor farmacêutico não importa a continuidade da vida, o que importa são os lucros. Não é por acaso então que a Aids, na África do Sul, já acometeu quase 5 milhões de pessoas.


*Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor universitário. Mestre pela USP em Integração da América Latina e Especialista em Política Internacional

A terceira crise do capitalismo

A terceira crise do capitalismo
Frei Betto: Escritor e assessor de movimentos sociais


A atual crise econômica do capitalismo manifestou seus primeiros sinais nos EUA em 2007 e já faz despontar no Brasil sinais de incertezas.

O sistema é um gato de sete fôlegos. No século passado, enfrentou duas grandes crises. A primeira, no início do século XX, nos primórdios do imperialismo, ao passar do laissez-faire (liberalismo econômico) à concentração do capital por parte dos monopólios. A guerra econômica por conquista de mercados ensejou a bélica: a Primeira Guerra Mundial. Resultou numa "saída” à esquerda: a Revolução Russa de 1917.

Em 1929, nova crise, a Grande Depressão. Da noite para o dia milhares de pessoas perderam seus empregos, a Bolsa de Nova York quebrou, a recessão se estendeu por longo período, com reflexos em todo o mundo. Desta vez a "saída” veio pela direita: o nazismo. E, em consequência, a Segunda Guerra Mundial.

E agora, José?

Essa terceira crise difere das anteriores. E surpreende em alguns aspectos: os países que antes compunham a periferia do sistema (Brasil, China, Índia, Indonésia), por enquanto estão melhor que os metropolitanos. Neste ano, o crescimento dos países latino-americanos deve superar o dos EUA e da Europa. Deste lado do mundo são melhores as condições para o crescimento da economia: salários em elevação, desemprego em queda, crédito farto e redução das taxas de juros.

Nos países ricos se acentuam o déficit fiscal, o desemprego (24,3 milhões de desempregados na União Europeia), o endividamento dos Estados. E, na Europa, parece que a história –para quem já viu este filme na América Latina– está sendo rebobinada: o FMI passa a administrar as finanças dos países, intervém na Grécia e na Itália e, em breve, em Portugal, e a Alemanha consegue, como credora, o que Hitler tentou pelas armas – impor aos países da zona do euro as regras do jogo.

Até agora não há saída para esta terceira crise. Todas as medidas tomadas pelos EUA são paliativas e a Europa não vê luz no fim do túnel. E tudo pode se agravar com a já anunciada desaceleração do crescimento de China e consequente redução de suas importações. Para a economia brasileira será drástico.

O comércio mundial já despencou 20%. Há progressiva desindustrialização da economia, que já afeta o Brasil. O que sustenta, por enquanto, o lucro das empresas é que elas operam, hoje, tanto na produção quanto na especulação. E, via bancos, promovem a financeirização do consumo. Haja crédito! Até que a bolha estoure e a inadimplência se propague como peste.

A "saída” dessa terceira crise será pela esquerda ou pela direita? Temo que a humanidade esteja sob dois graves riscos. O primeiro, já é óbvio: as mudanças climáticas. Produzidas inclusive pela perda do valor de uso dos alimentos, agora sujeitos ao valor de compra estabelecido pelo mercado financeiro.

Há uma crescente reprimarização das economias dos chamados emergentes. Países, como o Brasil, regridem no tempo e voltam a depender das exportações de commodities (produtos agrícolas, petróleo e minério de ferro, cujos preços são determinados pelas transnacionais e pelo mercado financeiro).

Neste esquema global, diante do poder das gigantescas corporações transnacionais, que controlam das sementes transgênicas aos venenos agrícolas, o latifúndio brasileiro passa a ser o elo mais fraco.

O segundo risco é a guerra nuclear. As duas crises anteriores tiveram nas grandes guerras suas válvulas de escape. Diante do desemprego massivo, nada como a indústria bélica para empregar trabalhadores desocupados. Hoje, milhares de artefatos nucleares estão estocados mundo afora. E há inclusive minibombas nucleares, com precisão para destruições localizadas, como em Hiroshima e Nagasaki.

É hora de rejeitar a antecipação do apocalipse e reagir. Buscar uma saída ao sistema capitalista, intrinsecamente perverso, a ponto de destinar trilhões para salvar o mercado financeiro e dar as costas aos bilhões de serem humanos que padecem entre a pobreza e a miséria.

Resta, pois, organizar a esperança e criar, a partir de ampla mobilização, alternativas viáveis que conduzam a humanidade, como se reza na celebração eucarística, "a repartir os bens da Terra e os frutos do trabalho humano”.


*Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser, de "Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entre outros livros.