"Socialismo e liberdade"

"Socialismo e liberdade"
"Proletários de todos os países, uni-vos!" (Karl Marx e Friedrich Engels; Manifesto do Partido Comunista)

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Caminhos do futuro

Caminhos do futuro
Por Emiliano José

Quase desnecessário dizer que Eric Hobsbawm tem se afirmado como um dos maiores intelectuais do nosso tempo. Por isso, compensa discutir, reverberar a conferência, ou parte dela, publicada pela Carta Maior, no dia 13 de outubro. A fala dele foi feita no primeiro dia do World Political Forum, em Bosco Marengo, na Alexandria. O tema era mais do que próprio para a contemporaneidade: qual futuro depois do comunismo? É, indagação, como deve ser. Peço licença aos leitores para falar um pouco extensivamente dessa fala.

Logo de cara, uma tese forte: todos os países do Leste, e os do Oeste também, devem sair da ortodoxia do crescimento econômico a todo custo e dar mais atenção à equidade social. Os países ex-soviéticos, na visão dele, ainda não superaram as dificuldades da transição para o novo sistema. Diria, de outra maneira, que eles mergulharam desordenadamente na política neoliberal.

O século breve, como ele denomina o século XX, teria sido marcado por um conflito religioso entre ideologias laicas. Só um intelectual do porte de Hobsbawm poderia dizer isso, sem medo. Foi dominado pela contraposição de dois modelos econômicos - o "socialismo", e as aspas são dele, identificado com economias de planejamento central tipo soviético, e o "capitalismo", também devidamente aspeado, que englobava todo o resto.

Essa contraposição nunca foi realista. Todas as economias modernas devem combinar público e privado de vários modos e em vários graus, e de fato fazem isso. Corajosa constatação de Hobsbawm, outra vez. Faz tremer os que copiam fórmulas, à direita e à esquerda. O exclusivismo de um ou de outro faliu. As economias do modelo soviético lá pelos anos 80. As do fundamentalismo de mercado anglo-americano, agora, no setembro passado.

O fim do "socialismo" foi catastrófico. As repercussões seguem até hoje, ao menos nos países da ex-URSS. A China, e lá vem ele com sua ousadia e firmeza intelectual, preferiu outro caminho capitalista, diferente do neoliberalismo, optando pelo modelo mais, como ele diria, "dirigista" das economias "tigres". Abriu caminho, assim para seu gigantesco salto econômico para frente, com muito pouca preocupação e consideração pelas implicações sociais e humanas, e eu completaria, ecológicas. A crise do capitalismo, essa que estamos ainda vivendo, terá conseqüências que ainda não dominamos.

Mesmo que não se saiba, ainda, quais as mudanças que a crise econômica em curso pode provocar, parece não haver dúvida, na visão de Hobsbawm, de que está em curso uma alternância de enormes proporções das velhas economias do Atlântico Norte ao Sul do planeta e principalmente à Ásia Oriental.

No desenvolvimento da conferência, ele chega a uma primeira e fundamental conclusão: não é mais possível acreditar em uma única forma global de capitalismo ou de pós-capitalismo. Delinear a economia do amanhã, no entanto, é, na visão dele, a parte menos relevante a nos preocupar em relação ao futuro. "A diferença crucial entre os sistemas econômicos não reside na sua estrutura, mas sim nas suas prioridades sociais e morais, e estas deveriam portanto ser o argumento principal do nosso debate".

Parece surpreendente, e não parece muito marxista, não? Não parece para os que cultuam dogmas. Ele explica isso ilustrando com dois aspectos que considera importantes. O primeiro é que o fim do socialismo - ele fala em fim do comunismo - implicou o desaparecimento repentino de valores, hábitos e práticas sociais que haviam marcado a vida de gerações inteiras. Foi um inesperado e brusco terremoto social.

Corretamente, ele afirma que serão necessárias diversas décadas antes que as sociedades pós-comunistas encontrem alguma estabilidade no seu modo de viver. E que algumas das conseqüências dessa desagregação social poderão exigir ainda um tempo maior para serem combatidas.

O segundo aspecto, na visão dele, de muita importância, é que tanto a política ocidental do neoliberalismo quanto as políticas pós-comunistas que ela inspirou, subordinaram propositalmente o bem-estar e a justiça social à tirania do PIB. Sempre o maior crescimento econômico possível, deliberadamente inigualitário. Com isso, minaram - e nos ex-países socialistas até destruíram - os sistemas de assistência social, do bem-estar, dos valores e das finalidades públicos.

O objetivo de uma economia não é o ganho. É o bem-estar de toda a população. O crescimento econômico não é um fim. É um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas. Um pensamento que lembra muito Celso Furtado. "Não importa como chamamos os regimes que buscam essa finalidade. Importa unicamente como e com quais prioridades saberemos combinar as potencialidades do setor público e do setor privado nas nossas economias mistas. Essa é a prioridade política mais importante do século XXI."

A alguns a tese de Hobsbawm, aos marxistas ortodoxos, aos que vivem com os olhos no passado, parecerá idealista. Ela, no entanto, corresponde a uma análise muito densa da situação mundial, e consegue postular uma sociedade de bem-estar a partir das potencialidades do setor público e privado, não se rendendo às teses neoliberais, próprias do fundamentalismo de mercado, e nem ao estatismo completo, que levou ao desastre final dos anos 80.

Se olharmos para o Brasil, se olharmos para o projeto que o governo Lula vem desenvolvendo, para o contraponto que se fez ao neoliberalismo do tucanato sem, no entanto, descartar o dinamismo do setor privado, encontraremos muita coisa do que Hobsbawm está defendendo.

Lula tem dito que não quer o crescimento econômico por si só. Quer que ele garanta melhores condições de vida ao nosso povo. Para que consiga tirar as pessoas da miséria absoluta, como já conseguiu com mais de 20 milhões de pessoas.

E este é um governo que tem tentado, das mais variadas formas, constituir novos valores. Sejam os referentes aos negros. Sejam aqueles ligados às mulheres. Aos jovens. Aos homossexuais. O respeito aos movimentos sociais. A difusão de uma idéia de solidariedade social. É só olhar para o Bolsa-Família. Tudo isso representa uma visão política e moral, e aqui no sentido amplo da palavra. Creio que não é por acaso que o mundo tem voltado os olhos para o Brasil. É porque por aqui está se desenhando, ainda em fase inicial, um novo caminho, o da revolução democrática.

A caminhada em direção a uma sociedade cada vez mais justa, cada vez mais igualitária, não é simples. E nem é uma caminhada que se baseie em modelos acabados. Se há a idéia, e há, de uma sociedade socialista, não se pode mais imaginá-la nos termos daquilo que foi construído no século XX.

Há de ser uma proposta, que se vai construindo passo a passo, realizando transformações na vida das pessoas, e que necessariamente comporta a presença de setores não-estatais e privados, tudo subordinado ao interesse público, e onde o Estado continuará a ocupar por muito, muito tempo um papel essencial. E com a democracia sendo o leito fundamental por onde passam essas transformações.

Emiliano José é doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor aposentado da Faculdade de Comunicação, jornalista de carreira e escritor com oito livros publicados. Exerceu recentemente o mandato de deputado federal pelo PT da Bahia.

Publicado no site da Carta Capital (21/10/2009) 

Acabou-se os tempos em que a revolução se dava através de rupturas violentas. Hoje o caminho para o socialismo é processual

Quando fundaram o socialismo científico, os filósofos e revolucionários alemães Karl Marx e Friedrich Engels afirmaram que a história é movida pela luta de classes. Na atual sociedade capitalista, a luta do proletariado contra a burguesia levará a revolução socialista e a destruição do capitalismo. E segundo Marx e Engels, essa revolução será violenta.

Entretanto a história não é estatica, por isso a realidade apontada por Marx e Engels no Manifesto Comunista, publicado em fevereiro de 1848, já não era mais a mesma realidade existente na segunda metade do século XIX. No Livro 1 de O Capital, publicado em 1867, Marx teorizou a respeito da progressiva passagem da exploração do trabalho através da mais-valia absoluta (da redução do salário e do aumento da jornada de trabalho) para a exploração através da mais-valia relativa (do aumento da produtividade), que alterou as condições em que se trava a luta de classes. Como resultado dessa alteração, o filósofo e revolucionário alemão Karl Marx afirmou que era possível uma revolução socialista não violenta, com o proletariado chegando ao poder pelo voto.

Em seu discurso no Congresso de Haia, realizado em 1872, Marx afirmou que nos EUA, na Grã Bretanha, e talvez na Holanda, os trabalhadores poderiam atingir suas metas por meios pacíficos. A possibilidade da transição pacífica, segundo Marx, dependeria das diferentes correlações de força existentes no interior de cada país, do grau de consolidação das instituições e também da resistência oferecida pelas classes dominantes às transformações sociais. Marx sublinhou igualmente, que será a classe operária de cada país que deverá escolher os meios a serem utilizados.

Em 1895, Friedrich Engels escreveu a Introdução para uma nova edição de "Luta de Classes na França", de Marx.

Neste texto, por muitos considerado seu testamento político, Engels parte do reconhecimento de que, em 1848, quando rompeu o movimento revolucionário de fevereiro em Paris, ele e Marx estavam verdadeiramente "fascinados" com a experiência histórica das revoluções francesas anteriores, a de 1789 e 1830, que lhes haviam fornecido uma espécie de “modelo” com o qual representar a “marcha e o caráter da revolução do proletariado”. A história posterior, porém, “não só destruiu o erro em que nos encontrávamos, como também modificou de cima a baixo as condições de luta do proletariado”. Cinqüenta anos depois, ele constataria: “O método de luta de 1848 está hoje antiquado em todos os aspectos”. A história deixara patente que “o estado do desenvolvimento econômico não estava maduro para poder eliminar a produção capitalista”, que demonstrava “grande capacidade de extensão”. E o capitalismo, quanto mais se expandia, mais punha de manifesto as relações de classe que o sustentavam, “criando e fazendo passar ao primeiro plano uma verdadeira burguesia e um verdadeiro proletariado” e, desta forma, injetando inédita intensidade à luta entre as duas classes. Ao final do século, na visão de Engels, havia se organizado “um grande, único e poderoso exército do proletariado, o exército internacional dos socialistas” que, “longe de poder conquistar a vitória em um grande ataque decisivo, teria que avançar lentamente, de posição em posição, em uma luta tenaz e dura”. A época, agora, não era mais das “minorias revolucionárias”, mas das massas; não mais das “barricadas e das lutas de rua", mas das batalhas eleitorais. Engels enfatizaria que os operários alemães, “graças à inteligência com que souberam utilizar o sufrágio universal”, haviam conseguido viabilizar o “crescimento assombroso de seu partido”, que em 1871 obtivera 102.000 votos, passara a 550.000 votos em 1884 e alcançaria quase 2 milhões de votos nas eleições da primeira metade dos anos 90.

O sufrágio universal convertia-se, assim, em uma “arma nova e mais afiada”, posto que permitia aos operários “entrar em contato com as amplas massas do povo” e pôr em ação “um método de luta totalmente novo”, passando a perceber que “as instituições estatais nas quais se organizava a dominação da burguesia ofereciam, à classe operária, novas possibilidades de lutar contra essas mesmas instituições”. Em decorrência, concluiria Engels, os governos burgueses começariam a “temer muito mais a atuação legal do que a atuação ilegal do partido operário, mais os êxitos eleitorais do que os êxitos insurrecionais”. Não deixava de ser uma ironia: “nós, os ‘revolucionários’, os ‘elementos subversivos’, prosperamos muito mais com os meios legais do que com a subversão”, ao ponto dos partidos da ordem “exclamarem desesperados, juntamente com Odilon Barrot, que la légalité nous tue, a legalidade nos mata, ao passo que, da nossa parte, acabamos por adquirir, com esta legalidade, músculos vigorosos e faces coloridas, como se tivéssemos sido alcançados pelo sopro da eterna juventude”.

Engels, enfim, nesse texto verdadeiramente paradigmático, procurava atualizar a estratégia do movimento operário às novas determinações da realidade histórica e às mudanças que se processavam no próprio plano das lutas:

“Se se modificaram as condições da guerra entre as nações, do mesmo modo teriam que se modificar as condições da luta de classes. Acabou a época dos ataques de surpresa, das revoluções feitas por pequenas minorias conscientes que se punham à frente das massas inconscientes. Onde quer que se trate de realizar uma transformação completa da organização social, as massas têm de intervir diretamente, têm de já ter compreendido por si mesmas do que se trata e porque estão dando o sangue e a vida. E para que as massas compreendam o que deve ser feito, é preciso um trabalho longo e perseverante”.

Reiterava-se, assim, uma das grandes teses do marxismo clássico: as formas de luta (pacíficas ou violentas, legais ou ilegais) deveriam ser sempre uma resposta às situações históricas concretas, sendo por elas determinadas.

Tal transição verdadeiramente epocal alterava a qualidade mesma do Estado, que se transformava numa instituição efetivamente complexa, dilatada, invasiva. Fazia-se necessária, portanto, uma nova conceitualização, capaz de possibilitar a apreensão dos novos nexos que se estabeleciam no ampliado plano da atividade estatal. Com o Estado reforçado conectando-se com múltiplas associações particulares e incorporando-as a si, todo o espaço estatal ganhava nova qualidade e o fato mesmo da dominação política era redefinido: a coerção, o “monopólio legítimo da violência”, ação típica da “sociedade política”, tinha de ser cada vez mais sintonizada com a busca de consensos.

(Marco Aurélio Nogueira; em "GRAMSCI E OS DESAFIOS DE UMA POLÍTICA DEMOCRÁTICA DE ESQUERDA")


O revolucionário marxista italiano Antonio Gramsci avançou a reflexão de Engels, analisando a questão do consenso. Assim refundou a teoria política do marxismo, desenvolvendo a teoria da revolução socialista no mundo capitalista desenvolvido, uma revolução que "arde em fogo lento", onde a luta pela hegemonia é essencial para a vitória do proletariado. Assim, a luta de classes deixa de ser uma "guerra de movimento", como era descrita no Manifesto Comunista, e como ocorreu na Rússia semi-feudal dos czares, e se torna uma "guerra de posição", pois o poder não está concentrado apenas nos palácios, e sim disperso na sociedade.

"[...] no Ocidente, onde a 'sociedade civil' é extremamente articulada com a proteção do 'Estado político', a luta será longa, será uma enervante 'guerra de posição' [...]. É preciso aprender todos os métodos mais elaborados dos adversários, não deixar-se surpreender despreparados ou atrasados nessa revolução que arde em 'fogo lento', abandonar o primitivismo econômico e mecanicista precedente e desenvolver a capacidade de previsão e de guia dos acontecimentos, chamando os intelectuais para colaborar com tal empreendimento histórico e colmatando continuamente as distâncias que se formam entre as linhas estratégicas dos vértices e a capacidade de compreensão e de recepção da base." (Antonio Gramsci)


Assim fica claro que ser comunista e revolucionário não é ficar pregando greve geral, usando as eleições apenas para denunciar o capitalismo, promovendo um sectarismo que serve apenas para afastar as massas populares do marxismo. Friedrich Engels reconhece que os tempos das revoluções realizadas por pequenas minorias chegou ao fim, chegando inclusive a afirmar que os revolucionários ganham mais atuando na legalidade e não fora dela. Antes dele, Marx já havia reconhecido que o proletariado podia chegar ao poder pelo voto. A Revolução Russa de 1917 foi um fato histórico isolado, que só foi possível pelo fato daquele país ainda estar vivendo em uma realidade semi-feudal, onde ainda havia o poder autocratico do czar e os trabalhadores viiverem na extrema pobreza, e completamente excluidos do processo político. Por isso Gramsci desenvolve a teoria da revolução socialista no ocidente, onde ocorreu a "socialização da política", afirmando a importância da luta pela hegemonia. Antes de ser dominante, a classe trabalhadora precisa ser dirigente.

A esquerda precisa abandonar a herança autoritária do bolchevismo, assumindo a defesa da democracia como valor universal. Precisa romper com o dogmatismo, conciliando a luta pelo socialismo com a luta em defesa do meio ambiente e do desenvolvimento autossustentável.

Getúlio e Lula: o mesmo combate

Getúlio e Lula: o mesmo combate
Emir Sader*

Há pouco mais de meio século – em 1954 -, em um dia 24 de agosto, morria Getúlio Vargas, o mais importante personagem da história brasileira no século passado. Ele havia sido antecedido na presidência do país por Washington Luis (como FHC, carioca recrutado pela elite paulista), que se notabilizou pela afirmação de que “A questão social é questão de polícia”, que erigiu como brasão de seu governo, produto da aliança “café com leite”, das elites paulista e mineira (essa que FHC queria reviver).

Getúlio liderou o processo popular mais importante do século passado no Brasil, dando inicio à construção do Estado nacional, rompendo com o Estado das oligarquias regionais primário-exportadoras, e começando a imprimir um caráter popular e nacional ao Estado brasileiro.

Um país que tinha tido escravidão até pouco mais de 4 décadas – o ultimo a terminar com a escravidão nas Américas - , que significava que o trabalho era atividade reservada a “raças inferiores”, passava a ter um presidente que interpelava os brasileiros no seu discurso com “Trabalhadores do Brasil”. Fundou o Ministério do Trabalho, deu inicio à Previdência Social, fazendo com que a questão social passasse de “questão de policiai”, a responsabilidade do Estado.

Começou a aparelhar o Estado para ser instrumento fundamental na indução do crescimento econômico que, junto às políticas de industrialização substitutiva de importações, deu inicio ao mais longo ciclo de expansão da história do Brasil. Promoveu a expansão da classe operária, criou as carreiras públicas no Estado, impulsionou a construção de um projeto nacional, de uma ideologia da soberania nacional, organizou um bloco de forças que levou a cabo o processo de industrialização, de urbanização, de modernização do Brasil.

Getúlio pagou com sua vida a audácia da fundação da Petrobrás, no seu segundo mandato. Foi vítima dos tucanos da época, com o corvo mor Carlos Lacerda como golpista de plantão. Tal como agora, detestavam tudo o que tivesse que ver com o povo, com nação, com Estado. Resistiram à campanha “O petróleo é nosso”, como entreguistas e representantes do império norteamericano aqui. A direita nunca perdoou Getúlio.

Os corvos daquela época – tal como os de hoje – desapareceram na poeira do tempo. Seu continuador, FHC, afirmou que ia “virar a página do getulismo”, porque sabia que o neoliberalismo seria incompatível com o Estado herdado do Getúlio. Fracassou seu governo e o projeto de Estado mínimo dos tucanos.

A figura de Getúlio permanece como referência central do povo brasileiro e se revigora com o governo Lula. Com a consolidação da Petrobrás, com a retomada do papel do Estado indutor do desenvolvimento econômico, da afirmação dos direitos sociais dos trabalhadores e da massa da população.

São Paulo, que promoveu uma tentativa de derrubada do Getúlio em 1932 – movimento caracterizado por Lula como uma tentativa de golpe -, promove Washington Luis e o 9 de Julho (de 1932), com nomes de avenidas, estradas e ruas, mas não tem nenhum espaço público importante com o nome do Getúlio. Não por acaso São Paulo representa hoje o ultimo grande bastião da direita, das forças e do pensamento conservador, no Brasil.

Getúlio foi um divisor de águas na história brasileira, como hoje é Lula. Diga-me o que pensa de Getúlio e de Lula e eu te direi quem você é politicamente. O dia 24 de agosto encontra o Brasil reencontrado com o Estado nacional, democrático e popular, com a soberania na política externa, com o regaste do mundo do trabalho, com mais uma derrota da direita. O fio condutor da história brasileira passa pelos caminhos abertos e trilhados por Getúlio e por Lula.

* Emir Sader é filósofo, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas.

Consolidar a ruptura histórica operada pelo PT



Consolidar a ruptura histórica operada pelo PT
Leonardo Boff *

Para mim o significado maior desta eleição é consolidar a ruptura que Lula e o PT instauraram na história política brasileira. Derrotaram as elites econômico-financeiras e seu braço ideológico, a grande imprensa comercial. Notoriamente, elas sempre mantiveram o povo à margem da cidadania, feito, na dura linguagem de nosso maior historiador mulato, Capistrano de Abreu, "capado e recapado, sangrado e ressangrado". Elas estiveram montadas no poder por quase 500 anos. Organizaram o Estado de tal forma que seus privilégios ficassem sempre salvaguradados. Por isso, segundo dados do Banco Mundial, são aquelas que, proporcionalmente, mais acumulam no mundo e se contam, política e socialmente, entre as mais atrasadas e insensíveis. São vinte mil famílias que, mais ou menos, controlam 46% de toda a riqueza nacional, sendo que 1% delas possui 44% de todas as terras. Não admira que estejamos entre os países mais desiguais do mundo, o que equivale dizer, um dos mais injustos e perversos do planeta.

Até a vitória de um filho da pobreza, Lula, a casa grande e a senzala constituíam os gonzos que sustentavam o mundo social das elites. A casa grande não permitia que a senzala descobrisse que a riqueza das elites fora construída com seu trabalho superexplorado, com seu sangue e suas vidas, feitas carvão no processo produtivo. Com alianças espertas, embaralhavam diferentemente as cartas para manter sempre o mesmo jogo e, gozadores, repetiam: "façamos nós a revolução antes que o povo a faça". E a revolução consistia em mudar um pouco para ficar tudo como antes. Destarte, abortavam a emergência de outro sujeito histórico de poder, capaz de ocupar a cena e inaugurar um tempo moderno e menos excludente. Entretanto, contra sua vontade, irromperam redes de movimentos sociais de resistência e de autonomia. Esse poder social se canalizou em poder político até conquistar o poder de Estado.

Escândalo dos escândalos para as mentes súcubas e alinhadas aos poderes mundiais: um operário, sobrevivente da grande tribulação, representante da cultura popular, um não educado academicamente na escola dos faraós, chegar ao poder central e devolver ao povo o sentimento de dignidade, de força histórica e de ser sujeito de uma democracia republicana, onde "a coisa pública", o social, a vida lascada do povo ganhasse centralidade. Na linha de Gandhi, Lula anunciou: "não vim para administrar, vim para cuidar; empresa eu administro, um povo vivo e sofrido eu cuido". Linguagem inaudita e instauradora de um novo tempo na política brasileira. O "Fome Zero", depois o "Bolsa Família", o "Crédito Consignado", o "Luz para Todos", o "Minha Casa, minha Vida, o "Agricultura familiar, o "Prouni", as "Escolas Profissionais", entre outras iniciativas sociais permitiram que a sociedade dos lascados conhecesse o que nunca as elites econômico-financeiras lhes permitiram: um salto de qualidade. Milhões passaram da miséria sofrida à pobreza digna e laboriosa e da pobreza para a classe média. Toda sociedade se mobilizou para melhor.

Mas essa derrota infligida às elites excludentes e anti-povo, deve ser consolidada nesta eleição por uma vitória convincente para que se configure um "não retorno definitivo" e elas percam a vergonha de se sentirem povo brasileiro assim como é e não como gostariam que fosse. Terminou o longo amanhecer.

Houve três olhares sobre o Brasil. Primeiro, foi visto a partir da praia: os índios assistindo a invasão de suas terras. Segundo, foi visto a partir das caravelas: os portugueses "descobrindo/encobrindo" o Brasil. O terceiro, o Brasil ousou ver-se a si mesmo e aí começou a invenção de uma república mestiça étnica e culturalmente que hoje somos. O Brasil enfrentou ainda quatro duras invasões: a colonização que dizimou os indígenas e introduziu a escravidão; a vinda dos povos novos, os emigrantes europeus que substituíram índios e escravos; a industrialização conservadora de substituição dos anos 30 do século passado mas que criou um vigoroso mercado interno e, por fim, a globalização econômico-financeira, inserindo-nos como sócios menores.

Face a esta história tortuosa, o Brasil se mostrou resiliente, quer dizer, enfrentou estas visões e intromissões, conseguindo dar a volta por cima e aprender de suas desgraças. Agora está colhendo os frutos.

Urge derrotar aquelas forças reacionárias que se escondem atrás do candidato da oposição. Não julgo a pessoa, coisa de Deus, mas o que representa como ator social. Celso Furtado, nosso melhor pensador em economia, morreu deixando uma advertência, título de seu livro A construção interrompida (1993): "Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta no devir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-Nação" (p.35). Estas não podem prevalecer. Temos condições de completar a construção do Brasil, derrotando-as com Lula e as forças que realizarão o sonho de Celso Furtado e o nosso.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor de Depois de 500 anos: que Brasil queremos, Vozes (2000).

Socialismo como possibilidade

Socialismo como possibilidade
Por Emiliano José*

Jacob Gorender parece ser uma espécie de intelectual em fase de extinção. Digo isso por sua natureza militante, por fazer parte do atualmente raro contingente dos intelectuais orgânicos, conceito desenvolvido por Gramsci para definir aqueles pensadores que têm lado, posições nítidas, preferência de classe, no caso dele as classes trabalhadoras. Foi um dos principais dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e é autor, entre tantos títulos, de O escravismo colonial, obra de referência quanto à nossa formação social, e de Combate nas trevas, texto essencial para quem quiser compreender a esquerda que se dedicou à luta armada na luta contra a ditadura militar iniciada em 1964.

Neste livro Marxismo sem Utopia desenvolve um raciocínio inovador, iconoclasta, ao discutir o conceito de utopia no sentido negativo, pretendendo opô-lo ao de ciência, e querendo fazer crer que até mesmo Marx e Engels, até certo ponto, viram-se prisioneiros de concepções utópicas ou, no mínimo, ficaram no meio do caminho entre a utopia e a ciência. A pretensão dele é fincar pé no território da ciência, combatendo as idéias utópicas, tal e qual o fizeram Marx e Engels em suas formulações centrais.

Gorender discutirá com rigor, na sua iconoclastia, a idéia do sujeito revolucionário, avançando a tese de que o proletariado, sacrossanto personagem das transformações revolucionárias segundo o pensamento marxista original, era e é ontologicamente reformista, ou seja, não estava disposto à revolução, como se quis fazer crer durante mais de século e meio.

Tanto é assim, segundo ele, que a idéia de revolução socialista só prosperou e triunfou em países de ampla predominância camponesa, em nações de nítida predominância agrária, onde o proletariado era uma classe numericamente pequena e socialmente débil.

Durante largo tempo - e essa é uma das heranças mais fortes do stalinismo -, os marxistas considerados mais puros, ou mais revolucionários, debitaram às traições de reformistas as atitudes da classe operária face à revolução - talvez aqui caiba lembrar, por exemplo, o proletariado alemão diante da turbulência do final da década de 20, quando Rosa Luxemburgo é assassinada. Gorender tem a coragem de dizer que as lideranças reformistas social-democratas foram produzidas mais, muito mais pela própria classe operária do que pela burguesia. E ele ressalta, no entanto, que a propensão ao reformismo não deve ser confundida com passividade, lembrando que as reformas, sob o capitalismo, foram conquistadas, muitas vezes, à custa de muito sangue.

ALÉM DO CAPITAL

Não se imagine que tais formulações carreguem qualquer carga de pessimismo face ao projeto revolucionário. Gorender acredita que o capitalismo se encontra hoje notavelmente amadurecido para a realização da transição socialista do que na primeira metade do século XX. Mas ele não imagina ser possível trabalhar com a perspectiva de uma "nova aventura bolchevique".

Acredita ser necessário continuar a pensar a possibilidade de uma alternativa não-capitalista, de um avanço para além do capital. E fala-se em possibilidade porque ele trabalha com idéia da incerteza como aspecto integrante dos processos objetivos.

O sujeito histórico - a força social promotora da revolução socialista - deverá ser o bloco de assalariados, dirigido pelos assalariados intelectuais, segundo a visão de Gorender. Ele não crê que os movimentos sociais, com todos os êxitos que alcançaram, possam vir a ser o sujeito revolucionário. Tais movimentos, segundo a concepção dele, possuem composição classista heterogênea e objetivos circunscritos aos limites da sociedade burguesa.

Do bloco revolucionário de assalariados farão parte, sem dúvida, o proletariado industrial, hoje, no entanto, submetido a um processo intenso de redução quantitativa.

A ousadia de Gorender é a de propor que a força social dirigente da luta revolucionária não deva ser formada por excluídos, mas por incluídos no sistema.

Estes seriam os assalariados intelectuais, capazes de aglutinar em um só bloco revolucionário os assalariados manuais (o proletariado no seu significado tradicional), os trabalhadores autônomos (camponeses, prestadores de serviço e profissionais diversos), a pequena burguesia e os excluídos do sistema (desempregados estruturais, minorias discriminadas etc.). A tese rende muitas discussões, claro. É uma tentativa de responder ao problema do sujeito histórico, problema sem solução desde que desabou a idéia de um proletariado ontologicamente revolucionário.

Tentativa que, pôr um problema sem discuti-lo nos limites deste texto, guarda semelhança com a idéia leninista da revolução trazida de fora para dentro, com quadros dirigentes que levariam o sujeito proletário à consciência revolucionária.

Essencial, no livro, creio, é o conceito do socialismo como possibilidade, nunca como um fim imanente à sociedade e à sua história. Trata-se de um fim que homens e mulheres elaboram, sujeito a se realizar ou não. Um fim que estará sempre sujeito à indeterminação, dependente da luta dos próprios homens.

Aqui, outra vez, cabe lembrar Rosa Luxemburgo que, diante da hecatombe da Primeira Guerra Mundial, pôs o dilema "socialismo ou barbárie".

Com isso, ela punha o socialismo como possibilidade, não como inevitabilidade. É o que Gorender tenta atualizar, pretendendo combater as ilusões utópicas e o determinismo mecanicista.

*Emiliano José é deputado federal(PT/BA), doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor aposentado da Faculdade de Comunicação, jornalista de carreira e escritor com oito livros publicados.


Publicado em A Tarde (15/07/06)

MARXISMO SEM UTOPIA

MARXISMO SEM UTOPIA

O historiador marxista Jacob Gorender, autor, entre outras obras, de O escravismo colonial e Combate nas Trevas, nos fala de seu mais recente livro Marxismo sem utopia (São Paulo, Ática, 1999). Trata-se de um ambicioso esforço de, à luz da teoria e da prática marxistas ao longo de 150 anos, libertar o pensamento revolucionário daquelas concepções que representam uma ruptura incompleta de Marx com o socialismo utópico.

Por José Corrêa Leite*

Pergunta: Você acaba de lançar o livro Marxismo sem utopia, que é uma análise dos desafios enfrentados pelo pensamento marxista na presente situação histórica. Qual é, na sua opinião, o lugar que a obra de Marx ocupa hoje?

Resposta: A importância da contribuição de Marx ao pensamento moderno dificilmente pode ser contestada. Ele está na galeria de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, dos grandes pensadores que a humanidade já teve. Ele deu uma enorme contribuição ao conhecimento social, em especial à economia política (o que hoje se chama de ciência econômica), mas também à sociologia, ao que se denomina hoje ciência política, à teoria do Estado. E ainda, em primeiro lugar, a filosofia.

Mas se a contribuição de Marx me parece indiscutível e altíssima, o mesmo não se pode dizer do marxismo. É o marxismo como doutrina que hoje está em causa. O marxismo visava e visa fundamentar o objetivo socialista e abrange não só a obra de Marx como a de Engels e de seus sucessores - Lenin, Trotski, Bukharin, Gramsci, Kautsky, Lukács até pensadores mais recentes, como Marcuse e Althusser. Todos deram uma contribuição ao que se chama de marxismo.

Que o marxismo esteja em causa me parece bastante evidente. O mundo mudou muito neste século. A sociedade capitalista que hoje domina o planeta é muito diferente tanto com relação à época de Marx como com relação à primeira metade do século XX. Mudou também, notavelmente, a configuração da classe operária. Estes fatores questionam o marxismo como teoria que não avançou com as mutações da realidade histórica.

Há ainda outra questão: é impossível dissociar o marxismo do que aconteceu com a União Soviética e outros países que realizaram revoluções pretensamente socialistas. As transformações políticas, sociais e econômicas na União Soviética e nestes países foram fundamentadas com teses marxistas, por pessoas que se consideravam marxistas. Por mais que nos repugne, não é possível deixar de reconhecer que Stalin também era marxista, o que ele escreveu e fez se baseia no que considerava como marxismo. Não se pode, então, dissociar o marxismo desses fatos, que o desacreditaram diante da opinião mundial.

O que me propus a enfrentar foram alguns dos problemas que vieram com esse descrédito sofrido pelo marxismo.

Pergunta: Marx estabelece um campo teórico que hoje se encontra em crise. Sua obra é um esforço de repensar quais seriam as bases para voltar a dotar o marxismo de vitalidade, de condições para interpretar o mundo contemporâneo e projetar sua transformação rumo ao socialismo. Quais seriam os eixos dessa atualização do marxismo?

Resposta: Esforçando-me por abordar tema tão complexo e procurando, no que foi possível, reportar-me ao que havia de mais recente, constatei que o eixo da abordagem devia ser o percurso incompleto de Marx e Engels da utopia para a ciência. Eles ficaram no meio do trajeto, não foram até o fim, embora se propusessem a isso. Substituir a utopia pela ciência é o objetivo declarado com todas as letras no Manifesto Comunista. Engels também abordou o projeto em uma parte do Anti-Dühring, que se transformou na obra Do socialismo utópico ao socialismo científico. E o propósito de Marx, ao dedicar seus maiores esforços a elaborar O capital, foi dar uma base científica à idéia do socialismo, tirá-la daquelas construções quiméricas de Fourier, Saint-Simon, Proudhon, dos anarquistas etc., e assentá-la no que ele considerava um fundamento científico.

Trata-se, pois, de libertar a teoria de Marx do que existe de incompleto na sua ruptura com o utopismo. Algumas idéias muito importantes do ambiente utópico, que Marx encontrou já formado quando se desprendeu de Hegel e de Feuerbach, transferiram-se para a obra que pretendia fosse plenamente científica. Mas ele não conseguiu se libertar completamente de tais idéias. Seus melhores seguidores (Lenin, Gramsci, Lukács e outros) modificaram muita coisa, cada um deu sua contribuição, porém as teses utópicas perduraram.

Foi isso que procurei abordar de maneira sucinta no livro Marxismo sem utopia. Examinei os elos lógicos e históricos do pensamento de Marx e depois como isso foi tomando desvios à medida que era implementado com Kautsky, Lenin, Bukharin, Trotski etc. Cada um enfrentava obstáculos concretos e dava uma contribuição que, de certo modo, desviava da linha em que vinha a teoria, até este corpus teórico chegar aos nossos dias. Esta análise me permitiu tirar conclusões a respeito daquelas teses que deveriam ser filtradas, porque já não são compatíveis com os acontecimentos históricos e com as conclusões lógicas que se deve tirar da própria doutrina.

Pergunta: Duas dessas teses utópicas são a idéia de que o proletariado constitui-se num sujeito revolucionário imanente à história da humanidade e a de que existiria uma história dotada em si mesma de um sentido. Trata-se, pois, de uma crítica aos elementos deterministas e teleológicos presentes no pensamento marxista...

Resposta: Eu queria, antes, colocar uma outra questão, fruto da minha percepção de algumas evoluções das ciências exatas dessa segunda metade do século XX. O que me levou à questão da indeterminação, da incerteza e da chamada teoria do caos, hoje bastante conhecida. Marx era dialético e não tinha uma concepção fatalista da história. A história era, também para ele, cheia de acasos; ele não considerava que tivesse um rumo prefixado, a ser desvendado pela teoria. Mas constatei que suas referências à indeterminação foram feitas sempre em textos menores e em cartas. Já O capital é uma fábrica de certezas sobre o advento do socialismo. Eu o li assim; ele me imbuiu desta certeza, quando era muito jovem, e de outra maneira seria incompreensível a minha militância. Quando Gramsci chamou a Revolução Russa de "revolução contra O capital" também estava refletindo interpretação idêntica da magna obra de Marx. Obra genial, sem dúvida, mas dirigida à produção da certeza de que o comunismo é inevitável.

Penso, por isso, que o elemento de incerteza e indeterminação na obra de Marx não é suficiente. Pode-se dizer que ele existe, mas é fraco. Não tem a força que tem "a determinação", "o inevitável", "a férrea necessidade", expressões do próprio Marx. Por isso me preocupei em escrever um capítulo especial sobre o assunto e voltar a ele várias vezes no curso da argumentação.

Pergunta: O capítulo "Sistema, estrutura e incerteza: o acaso e suas maravilhas"?

Resposta: Exatamente. Eu me apoiei em cientistas como Ilya Prigogine, David Ruelle, Niels Bohr, Werner Heisenberg, Jacques Monod, e outros cientistas que trabalharam a questão. Claro que com os limites da minha fraca preparação nas ciências exatas. O pensamento desses cientistas é importantíssimo para o marxismo, que deve incorporar os paradigmas da indeterminação e do caos na sua concepção da história.

Pergunta: Manuel Sacristan e Daniel Bensaid apontaram a existência de uma tensão, na obra de Marx, entre uma visão positivista de ciência, dominante no século XIX, e uma visão dialética, o que ele chamava de ciência alemã contraposta à inglesa, na qual a análise da sociedade não está desligada da questão do sentido, não há a dualidade sujeito-objeto, as conseqüências da ação humana não são passíveis de pré-determinação. Esta tensão percorre o conjunto da obra de Marx. Se O capital tem todo este viés determinista, por outro lado, os textos escritos na década de 1840, em uma conjuntura revolucionária e que constituíram o marxismo como visão de mundo e sistema teórico, são muito mais marcados por esta visão dialética. Não seria, talvez, dar um peso desproporcional ao elemento determinista na visão de Marx enfatizar tanto o papel de O capital?

Resposta: Eu jamais pensaria em depreciar esta obra. Ninguém estudou uma formação social de maneira tão completa, tão holística, como fez Marx em O capital. Não se trata de uma obra só de economia, mas nela existe a análise mais profunda da estrutura e da dinâmica da sociedade moderna. Mas o sentido dela, o que Marx quis e o que está realmente expresso na obra, foi produzir a certeza, primeiro, de que o capitalismo é um sistema profundamente explorador, opressivo e injusto para a grande maioria da sociedade e, depois, difundir a certeza de que isso pode ser superado e o será por uma sociedade socialista. Esta é a idéia que tenho a respeito d'O capital. Obra que foi, sem dúvida, o fundamento do marxismo, dando ao movimento socialista certezas apoiadas no peso dos seus argumentos científicos: a sociedade burguesa não é harmônica, é dividida em classes antagônicas, há uma minoria que explora a grande maioria produtora da riqueza, o trabalho é a origem do capital, que se nutre da produção de mais-valia, da apropriação do sobreproduto do trabalho. Estas teses constituíram o fundamento do que se chama marxismo e continuam atuais.

Mas a questão que se segue das perguntas que você fez é que Marx tirou daí uma conclusão que não tem força lógica. O proletariado é a classe explorada específica do sistema capitalista, porém isso não significa que seja uma classe revolucionária, que também queira e possa se propor o objetivo de transformação socialista da sociedade, para tornar-se classe dominante. Tal conclusão não é uma conseqüência necessária. O proletariado pode ser uma classe explorada e ser, como afirmo, ontologicamente reformista.

Pergunta: Henry Maler diz que a utopia necessária compromete a utopia desejada; a promessa de que o socialismo virá de uma maneira inevitável acaba por comprometer a idéia de que trata de lutar pelo socialismo...

Resposta: Isso sempre me atormentou. Se o socialismo é inevitável, se ele vem necessariamente das contradições objetivas, então que papel tem o meu sacrifício e o de tantos outros? Eu nunca consegui uma resposta teórica. Este livro é resultado de tormentos íntimos que vêm de muitos anos e que, de certo modo, fui postergando. Mas a história avançou de tal maneira que não pude mais postergar o enfrentamento destas questões.

Aí entra o elemento da incerteza, que é fundamental na prática, e a célebre frase de Gramsci, que coloquei até sem citá-lo: "de certo, só temos a luta, não seus resultados". Vamos ter que lutar, sim! O proletariado reformista luta, procurei frisar. Ele não é uma classe apática, passiva, que deixa cooptar. Ele é combativo, mas de modo reformista.

A idéia de reformismo ontológico causa certa surpresa, parece forte demais, é possível, mas não é nova. Creio, por exemplo, que Lenin, apoiando-se em Kautsky, atinou para isso quando disse que o proletariado espontaneamente só atinge a consciência sindical, que é a consciência reformista... A consciência revolucionária teria que ser introduzida de fora, por ser uma realização teórica da intelectualidade. Mas Lenin não concluiu daí que o proletariado seja uma classe, como afirmo, ontologicamente reformista, embora se trate de uma conclusão lógica necessária.

Com o Estado do bem-estar social, nos anos 50 e 60, proliferaram teses que afirmavam ser o proletariado uma classe cooptada pela burguesia. O Estado do bem-estar social tinha propiciado tamanhas prerrogativas e vantagens que a classe operária não tinha mais por que lutar pela transformação social radical. Naquela época me opus a tais teses, não conseguia aceitar que tivessem curso no Brasil. Hoje, devo modificar minha apreciação. Não é um problema só do Estado do bem-estar social, é um problema mais geral. Não é que o proletariado não seja combativo, torno a frisar, mas o impulso dele se dá no sentido de obter benefícios dentro do sistema capitalista e não fora dele. Sendo assim, o Estado do bem-estar social - o Welfare state - foi não só cooptação, mas conquista do proletariado, a mais alta por ele alcançada na história do capitalismo.

Como, então, explicar a Coluna de Paris e a Revolução Russa? A explicação está exatamente em que são dois fatos casuais, irrepetíveis. Duas conjunturas excepcionais de gravíssimas derrotas na guerra, daí decorrendo que o Estado burguês ficou impotente, esfacelado. No caso francês, os trabalhadores parisienses fizeram o que a burguesia ficou incapaz de fazer: tomaram o poder e passaram a administrar a cidade. No entanto, um episódio efêmero. O caso russo também veio com a conjunção de uma burguesia impotente e desprestigiada, uma derrota terrível na guerra (mesma situação da Comuna) e um partido talentoso, com gente de grande disposição e capaz de propor aquilo que a massa do povo russo, particularmente a enorme massa camponesa, queria vitalmente: a paz e a terra. Os bolcheviques decidiram lutar pelo que as massas queriam, o que lhes deu enorme prestígio. As conseqüências se desdobraram por setenta anos, até completar um ciclo histórico.

Pergunta: Não existe nenhum sujeito revolucionário imanente na sociedade, o que há são forças políticas que podem ser capazes de mudar a sociedade e que têm que levar em conta as contradições sociais. Mas estas forças são construções políticas e não dados "objetivos"...

Resposta: Creio que esta é uma parte bastante polêmica do que escrevi em Marxismo sem utopia. Reconheço! Outra foi a proposição de abandonar a tese da ditadura do proletariado. O conceito de ditadura se presta a tantas confusões, que não vale a pena insistir nele. Sugiro que a transformação social pode ser obra de um bloco de assalariados sob a hegemonia dos assalariados intelectuais. Nos países capitalistas desenvolvidos, 75 a 90% da população vivem de salário. Mas este conjunto de assalariados é muito heterogêneo e o bloco, ao qual me refiro, deve ser delimitado àqueles assalariados que vivem somente do seu trabalho, sem auferir rendas de patrimônio.

Constatei o crescimento explosivo que está tendo o segmento dos assalariados intelectuais. A questão da intelectualidade se torna, então, mais ampla. Não é mais a intelligentsia, no sentido russo, não são somente os formadores de opinião - escritores, jornalistas, artistas, professores. Trata-se agora de gente que está inserida no processo direto da produção.

A produção capitalista exige hoje a participação de um número crescente de assalariados intelectuais. Dois setores são mais evidentes: primeiro, o de pesquisa e desenvolvimento, com a enorme expansão dos laboratórios e das instituições de pesquisa, tanto em universidades e entidades públicas, como nas grandes empresas privadas. Segundo, o trabalho propriamente intelectual, geralmente chamado de software, que tem um peso cada vez maior no processo direto da produção. Marx conseguiu decifrar o processo de organização do trabalho de seu tempo, mas este processo mudou muito desde então. A nova configuração da organização do trabalho deve ser tema da maior significação para a teoria socialista.

Pergunta: Lenin respondeu às contradições que o marxismo enfrentava na questão do sujeito revolucionário promovendo o agenciamento político do proletariado pelo partido. Seu livro aponta para uma revalorização da autonomia do político e, portanto, para o papel central das instituições políticas na constituição do sujeito revolucionário. Sob que forma se dá a organização do bloco histórico que você propõe?

Resposta: Sem dúvida, a luta e a transformação sociais exigem agentes que sejam capazes de liderar essa luta. Eu não proponho nenhuma receita nem a adesão a algum partido existente. O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornaram o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado. Agora, como fazer, não tenho receita.

Quando o PT surgiu, criou a esperança de que produziria uma superação eficaz do modelo bolchevique e seria capaz de implementar uma nova prática revolucionária no Brasil. Infelizmente, isto não se deu. O PT foi capaz de manter a esperança transformadora até a campanha de 1989, mas depois se desviou cada vez mais para um modelo francamente social-democrata. O que, em parte, é resultado de uma conjuntura mundial de refluxo da esquerda socialista e das idéias marxistas e a partir de 1990, conseqüência do início no Brasil do processo de reestruturação produtiva, que provocou um grande desemprego estrutural e uma crise ainda não sanada no movimento sindical. Tudo isto influi no PT. Se o partido se mostrar fiel a compromissos característicos da social-democracia combativa, que produziu o Estado de bem-estar social, será algo que podemos até mesmo considerar um ganho político. Mas se ele se vincular à atual social-democracia da terceira via, será realmente um desastre para o movimento socialista brasileiro.

Pergunta: Uma das teses centrais do utopismo de Marx, que seu livro critica, é a idéia do desaparecimento do Estado. Mas como pensar a construção de uma sociedade efetivamente democrática mantendo a dicotomia entre governantes e governados, que é justamente o que caracteriza o Estado?

Resposta: Esta é também uma questão que me atormentou por muito tempo. Fui educado na idéia de que o Estado vai desaparecendo, não imediatamente como propunham os anarquistas, mas paulatinamente, após a tomada do poder pelo proletariado. Essa tese sempre foi para mim o que hoje chamam de "cláusulas pétreas", no caso da nossa Constituição. Mas a minha constatação é que em todas as sociedades em que houve uma revolução dita socialista, o Estado se fortaleceu tremendamente.

Nem Marx nem Engels escreveram que o desaparecimento do Estado significa o desaparecimento de qualquer administração central. Eles repetem a célebre tese de Saint-Simon, de que o governo dos homens será substituído pela administração das coisas. Sem dúvida, muita coisa que é hoje política - porque temos o governo dos homens - deixará de ser, porque se tornará meramente tecno-administrativa. Não serão eliminadas as funções técnicas e administrativas do Estado atual, mas só aquelas que dizem respeito à opressão política e social, à luta de classes.

Mas há outras questões novas e muito importantes no quadro atual, ignoradas por Marx e seus seguidores. Uma é a diferença de gerações. Hoje se vive em média 30 ou 40 anos mais do que na época de Marx e Engels, o que aumenta a diferença entre gerações. Há o problema dos idosos: o aparelho social, previdenciário e médico-sanitário não acompanhou o aumento na expectativa de vida. Temos, então, interesses diferenciados de gerações. Não se trata somente de uma questão administrativa. Ela envolve opções políticas. Temos também a ecologia: o que produzir, para quem produzir, em que medida. Novamente temos questões que exigem definição de prioridades. Isto significa política e conflitos. Não de classe, mas opções políticas. A própria idéia de que as forças produtivas não podem conhecer um desenvolvimento indefinido limita os recursos para resolver certas demandas. Marx só concebia um limite para as forças produtivas: o das relações de produção obsoletas. Uma vez eliminado este empecilho, as forças produtivas se desenvolveriam sem limites. Mas hoje sabemos que há limites ecológicos, recursos escassos, necessidade de preservar o meio ambiente etc. Esses fatos me levam à conclusão de que não há como se propor extinguir o Estado e as funções políticas.

Engels tem duas explicações sobre a origem do Estado: uma, segundo a qual o Estado surgiu para satisfazer certas funções e outra que surgiu da luta de classes. Se considerarmos válida a primeira explicação, pode-se conceber que certas funções serão permanentes e precisarão de um Estado político, o que soa como redundância. Daí eu afirmar que a extinção do Estado é uma tese anarquista, que Marx e Engels receberam e incorporaram a sua doutrina, ressalvando apenas que a extinção não poderia ser imediata, que teria de ser paulatina. Mas tal herança anarquista deve ser eliminada.

A mesma coisa com a famosa divisão do socialismo em duas etapas. Proponho que só deva existir aquilo que Marx chama a primeira etapa. A segunda etapa antevê um paraíso judaico-cristão. Não podemos pensar seriamente em uma sociedade em que todas as necessidades são sempre satisfeitas. Esta é uma concepção estática das necessidades. E sabemos que, dadas as limitações dos recursos acessíveis, certas necessidades não poderão ser satisfeitas para todos. Alguns poderão ter atendidas suas novas necessidades e outros precisarão esperar, porque haverá escassez.

Pergunta: Se existir poder político, existirão aqueles que vão exercer as atividades políticas de maneira mais permanente. Como pensar uma sociedade não-capitalista democrática e a relação, nela, entre governantes e governados? Como pensar o exercício do poder no socialismo e sua relação com a atividade política especializada?

Resposta: Algumas idéias me parecem importantes. Uma delas é que nossa sociedade está muito mais aparelhada materialmente para o exercício da democracia direta do que qualquer outra do passado; as possibilidades de comunicação hoje são formidáveis. O problema é que os meios de comunicação constituem propriedade privada e estão centralizados em grandes organizações empresariais, o que restringe ou anula o seu aproveitamento democrático. Mas, uma vez socializados os meios de comunicação, penso que a democracia direta pode vir a ser uma realidade praticada sem hora marcada, a toda hora. O futuro dirá como isso vai ser feito.

Destaco ainda a existência de uma experiência de organização da sociedade civil bem maior que no passado, com uma multiplicidade de entidades, instituições, organizações maiores e menores em todos os meios sociais. Isso nos dá indicação do que pode ser, no futuro, a organização democrática da sociedade e a relação, também democrática, do Estado com a sociedade civil.

Outra questão que me parece importantíssima é a da garantia dos direitos individuais, do Estado de direito, como se diz hoje. O fato de os indivíduos terem certos direitos diante do Estado e diante da sociedade - que não se dissolvem nela - é algo fundamental. Este é um elemento da doutrina liberal que devemos incorporar em nossa visão e levar à prática,com muito mais conseqüência do que faz a sociedade burguesa.

É isto que vai dar concretude à democracia, que deve ser pluralista. O central para que a democracia exista é o direito à divergência; a maioria tem o direito de dirigir, mas a minoria deve ter a segurança de ser respeitada, se organizar, fazer proselitismo, expressar suas opiniões. Para mim, isso é o fundamental, condição sine qua non da democracia. Não devemos adotar uma visão formalista de que pelo fato de haver eleições periódicas, estamos numa democracia. Inúmeras eleições são pura farsa. Nos países ditos socialistas, 99% dos eleitores apoiavam o governo. Não dava para levar a sério. Nos países burgueses, uma infinidade de meios, em particular a força tremenda que a mídia tem hoje, é usada para manipular o pensamento das grandes massas no sentido de que seja favorável à burguesia. Não sou, evidentemente, contra a escolha dos dirigentes por via eleitoral democrática. Sou contra a conclusão de que pelo mero fato de que existem eleições, já temos democracia.

Carlos Nelson Coutinho, a quem eu prezo muito, afirma que a democracia é um valor universal. Estou de acordo com a tese. É um valor universal, não só para hoje, mas também para amanhã, no regime socialista. Mas ele estende a tese ao postular que a luta pela conquista do socialismo deve ser, igualmente, democrática. Aí eu já não posso concordar. Podemos conjecturar sobre uma transição democrática e pacífica para o socialismo. Mas se trata de uma perspectiva condicional. Depende de que o adversário respeite as regras do jogo.

Pergunta: A atividade política no quadro de superação do capitalismo pode também ser potencializada pelas transformações tecnológicas que promovam a redução substancial da jornada de trabalho e as condições para uma vida liberada da opressão...

Resposta: A redução da jornada de trabalho é uma tendência histórica concreta. Há cem anos se trabalhava duas vezes mais do que hoje. A produtividade do trabalho aumentou enormemente. E não parece que essa tendência tenha chegado ao fim. Há os limites ecológicos, mas a tecnologia ainda tem muito chão para se desenvolver.

Mas por que a jornada de trabalho não está diminuindo agora? Porque o capital não quer e os trabalhadores não têm tido força para se contrapor às imposições do capital. Os trabalhadores estão na defensiva, sofrendo com o desemprego estrutural e todos os fenômenos da reestruturação capitalista. Os assalariados intelectuais ainda são elementos de legitimação da ordem existente, não passaram para o lado do socialismo, continuam, como classe, defendendo a ordem existente. Nestas condições, está difícil conseguir uma nova redução mundial da jornada de trabalho.

As possibilidades tecnológicas não levam, todavia, à eliminação do trabalho. Em alguma medida, sempre se trabalhará. Tudo aponta, porém, para uma situação em que o trabalho virá a ser um momento secundário na vida das pessoas. Hoje, o trabalho continua central, mas ele pode não ser central no futuro. E não é parte do objetivo do socialismo a idéia de que trabalhar "é o nosso destino e que isso é formidável". Isso não está certo. O trabalho continuará existindo, mas o tempo livre será muito mais extenso e dará novas possibilidades à realização humana - no campo das relações afetivas, da escolha de atividades culturais superiores, do aprendizado voluntário, do lazer não comercializado e degradado, mil e uma coisas que hoje só estão ao alcance de quem é rico.

Pergunta: O penúltimo capítulo do seu livro tem como título "Uma escolha a ser feita". Essa escolha é a do engajamento pela transformação da sociedade ou não, a aceitação ou não do sistema que está posto. A concepção que permeia o livro é uma crítica da história como progresso fatal, como destino inelutável, como algo com tendência inscrita ou necessidade inevitável...

Resposta: Sem dúvida! Esforcei-me por superar essa concepção de história. A idéia de que o capitalismo vai ser inevitavelmente sucedido pelo socialismo não é sustentável. Eu apresento um argumento que pode parecer simplista, mas que não é: hoje os homens podem se auto-exterminar como espécie, o meio para isso existe! Houve infinitos massacres na história, mas nunca esta possibilidade de auto-extermínio total. Só por isso, devemos ser prudentes em nossas afirmações. É só retrospectivamente que há alguma coisa de lógico na seqüência de formações sociais. Supor o capitalismo antes do feudalismo não parece lógico, mas a verdade é que a seqüência institucionalizada nos famosos manuais marxistas-leninistas é cheia de exceções. Houve um modo de produção asiático, a escravidão só ocorreu em uma área restrita da bacia do Mediterrâneo e, modernamente, ressurgiu nas Américas. Tantas exceções fazem com que a tese geral não se sustente.

Pergunta: Você vê algum sentido de progresso na história humana?

Resposta: Há quem diga que ocorreu progresso material, mas que, do ponto de vista ético, das relações propriamente humanas, houve até regressão. Penso que há aí uma lirificação do passado, das pequenas comunidades e das sociedades patriarcais. Não penso que o progresso seja inevitável nem que seja ilimitado. Creio que pode haver muitas regressões, porém que a humanidade tem conseguido avançar. Custou muito. Este século conheceu duas guerras mundiais terrivelmente destrutivas e desde então estamos a todo momento com alguma guerra local em curso. Mas foi possível avançar, ainda que a um custo tremendo. E o que aconteceu pelo menos nos dá a visão de um caminho que pode ser percorrido no sentido do socialismo, nos dá uma perspectiva de futuro. A história não se fechou, ao contrário do que disse Fukuyama, para citar um autor que já está fora das citações. Fukuyama, sim, fechou a história. Para ele, com o capitalismo liberal se atingiu o máximo. Mas a história não chegou ao fim, embora hoje o capitalismo domine o planeta.

Pergunta: A questão do mercado no marxismo também é objeto de um tratamento crítico na sua obra?

Resposta: Sem dúvida. Quando se começou a falar em socialismo de mercado, com a perestroika, uma grande quantidade de obras passou a tratar do tema. Os chineses são explícitos na tese de que o que existe na China é um socialismo de mercado. Eu me lembro de que Mandel protestou contra esta tese, afirmou que mercado e organização socialista da produção não se coadunam, não é possível compatibilizar teoricamente uma coisa com a outra. Aí entra também uma experiência de planejamento central, que não deve ser desprezada. A experiência soviética é a primeira na história mundial de uma sociedade complexa, com as forças produtivas modernas, em que houve um projeto de planejamento centralizado, na verdade um planejamento total. Procurei examinar as questões principais desse planejamento, os impasses em que incorreu e que depois resultaram em um desastre não superado. Tentaram injetar elementos de livre iniciativa privada para atenuar a rigidez do planejamento, mas não adiantou.

Na minha opinião, uma vez constituído um poder socialista, com a dominação do bloco de assalariados sob a liderança dos assalariados intelectuais, em um Estado com objetivos socialistas, não se pode ir muito além do ponto a que chegou a própria economia da sociedade burguesa. Deve-se superar este ponto, avançar além do capital, como diz Mészáros, mas não pretender impor um projeto de planejamento total, como o que os dirigentes soviéticos pensaram efetivar. Na União Soviética, estatizaram toda a produção de bens de produção. E os bens de consumo adquiridos pela população ficaram submetidos a preços administrados. O mercado ali era ficção. Na agricultura, impôs-se a coletivização compulsória. Havia um espaço para a agricultura familiar, mas era marginal. O planejamento não só foi total, mas totalitário.

Penso que isso deve ser evitado, mesmo no caso de economias tão desenvolvidas como os Estados Unidos, o Japão ou a Alemanha. Lester Thurow escreve que as empresas multinacionais, ao contrário do que se pensa, não planejam sua perspectiva para vinte anos, mas sim para três a cinco anos. Isso é algo que o quitandeiro da esquina não pode fazer. Ora, três a cinco anos é praticamente o tempo dos planos qüinqüenais soviéticos. A socialização da produção já está avançada na própria sociedade capitalista, podemos dar alguns passos à frente, aumentar os prazos, mas não em excesso. Deve-se pensar em praticar um processo de tentativa e erro, porque senão vamos adotar de novo aquele tipo de planejamento soviético e caminhar, mais uma vez, para o desastre.

É neste ponto que entra a questão do mercado: o que ele é, quais são suas possibilidades. O mercado é a forma de divisão social do trabalho e da produção na economia mercantil simples e na economia capitalista. É um alocador de recursos, pelo jogo de oferta e procura, indica onde é que se deve investir, funcionando como mostrador de preços. Seus apologistas não levam em conta as crises cíclicas, as depressões, os desperdícios enormes que esta alocação implica e a tendência à centralização da produção, conduzindo à extorsão da população, que sofre com os preços dos cartéis e monopólios. Mas ainda não temos um mostrador alternativo melhor do que o mercado. Pode ser que, com os computadores, já se consiga inventar uma visibilidade dos preços, que não passe pelo mercado. Mas isso ainda não existe. Enquanto não houver um dispositivo alternativo, deveremos apelar em última instância para o mercado. Um mercado regulado pelo planejamento.

Pergunta: Uma série de obras de Marx e Engels e do marxismo faz uma contraposição entre um socialismo quimérico, utópico, projetos que não têm fundamentação nas condições de vida e em forças sociais, e o que seria um socialismo formulado a partir de uma análise científica da sociedade. No entanto, toda uma corrente de pensadores marxistas, desde Ernst Bloch, vai destacar que a esperança é um elemento constitutivo da condição humana e os seres humanos sempre projetam perspectivas de melhorias, o que, em escala da sociedade, são projetos utópicos, de realidades que não existem. Depois, parece-me necessário, ao apontar a luta por uma sociedade socialista, sermos mais precisos do que foram Marx e Engels ao descreverem as características desta sociedade, porque já temos um acúmulo de experiências, positivas e negativas. Podemos não chamar isso de utopia, mas trata-se de uma sociedade que ainda não existe e pode nunca existir, que queremos construir e que não é simplesmente uma projeção científica. Neste sentido, embora concorde com todo o seu trabalho de crítica dos elementos utópicos, no sentido de quiméricos, presentes no pensamento marxista, não me parece que possamos pensar uma política de transformação da sociedade sem o alimento da utopia...

Resposta: Tenho ouvido o argumento que você coloca, de que não é possível viver e lutar sem utopia, de que abrir mão da utopia seria um conformismo tremendo. É preciso ter uma visão de algo que não existe hoje, que pode ser até fantasioso, porém que nos dá impulso e incentiva na luta social. Não desconheço este impulso que uma idéia utópica pode fornecer. Não pretendi, no meu livro, fazer uma exposição de tudo que já se falou sobre utopia. Nem sequer me referi a Karl Mannheim, com sua obra Ideologia e utopia. Mas coloco uma outra questão: a idéia de que precisamos encontrar motivadores socializantes é indispensável. Sem isso não há impulso transformador. Mas podemos dispensar a utopia. O nosso processo de luta sempre implicará tentativa e erro, correção do erro e nova tentativa. Poderemos, no entanto, avançar sem cair no realismo míope da engenharia social de Karl Popper. Rejeito a idéia de só inovar aquilo que puder ser revertido. Não, uma revolução produz também o irreversível. Mas coloco uma outra questão, levantada por adversários do marxismo, em particular Isaiah Berlin: os partidários de utopias, quando chegam ao poder, como aconteceu exatamente nos países ditos socialistas, querem que a sociedade se enquadre nas suas concepções e fazem delas um leito de Procusto. Se não se enquadra, então que se mutile o organismo para que caiba no leito. Isto é exatamente perigoso. Stalin foi o utopista do socialismo num só país, e Pol Pot praticou o genocídio em nome de uma sociedade igualitária absoluta. Essas utopias produziram as tragédias que conhecemos. A meu ver, podemos e devemos encontrar na própria realidade social os objetivos concretos, possíveis e viáveis, para transformá-la. A revolução socialista sempre implicará luta e sacrifícios, Porém não precisará terminar tragicamente, como aconteceu no século XX.



*José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate


Fonte: Revista Teoria e Debate / nº 43 - janeiro/fevereiro/março de 2000

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Socialismo sem liberdade, não pode ser socialismo

Eu tenho muito respeito pela obra do cientista político Carlos Nelson Coutinho, afinal foi um dos primeiros intelectuais marxistas em nosso país, a afirmar que é necessário conciliar socialismo e democracia, se opondo ao modelo socialista autoritario e burocratico que existia na URSS e no Leste Europeu. Entretanto eu vejo nele uma dificuldade muito grande em reconhecer que foi Lenin, o responsável pela construção desse socialismo autoritário e burocratico. Em entrevista publicada na revista Caros Amigos, Marcelo Salles pergunta a ele: "Estão sempre dizendo que não teria liberdade de expressão no socialismo, porque o Estado seria muito forte, e teria o partido único ..."

Carlos Nelson Coutinho responde: "Em primeiro lugar, não é necessário que no socialismo haja partido único, e não é desejável, até porque, poucas pessoas sabem, mas no início da revolução bolchevique o primeiro governo era bipartidário. Era o partido bolchevique e o partido social-revolucionário de esquerda. Depois, eles brigaram e ficou um partido só. Mas não é necessário que haja monopartidarismo. Segundo, Rosa Luxemburgo, marxista, comunista, que apoiou a revolução bolchevique, dizia o seguinte: 'liberdade de pensamento é a liberdade de quem pensa diferente de nós'. Então, não há na tradição marxista a ideia de que não haja liberdade de expressão, mas uma coisa é liberdade de expressão e outra coisa é o monopólio da expressão. Liberdade de expressão sim, contanto que não seja uma falsa liberdade de expressão. Eu acho que o socialismo é condição de uma assertiva liberdade de expressão." (Carlos Nelson Coutinho, na continuação da resposta a Marcelo Salles, revista Caros Amigos)"

Oras, eu conheço bem a história da Revolução Russa e sei perfeitamente que logo após a vitória dos bolcheviques, em outubro de 1917(segundo o calendário juliano), eles excluiram a participação da ala internacionalista dos mencheviques do governo soviético, estabelecido pelos próprios bolcheviques após derrubarem o governo provisório, mesmo sabendo que os mencheviques internacionalistas também faziam oposição a Primeira Guerra Mundial e ao governo provisório. O próprio Trotsky afirmou para Yuri Martov, lider dos mencheviques internacionalistas, que o lugar deles era na "lata de lixo da história".

E mais, os socialistas revolucionários de esquerda realmente participaram do governo soviético, mas de forma minoritaria. E a briga que Coutinho se refere ocorreu em março de 1918(calendário gregoriano), ou seja, apenas quatro meses após a revolução. E essa briga ocorreu pela oposição dos socialistas revolucionários de esquerda ao Tratado de Paz de Brest Litovsk, que tirou a Rússia da Primeira Guerra Mundial, cedendo grande parte de seu território aos alemães. Portanto a quem Coutinho quer enganar??? Os bolcheviques nunca toleraram a democracia, enquanto os socialistas revolucionários de esquerda eram passivos e obedeciam ao que os bolcheviques mandavam, tudo bem. Mas quando passaram a discordar....

Se os bolcheviques eram tão democráticos, porque dissolveram a Assembléia Constituinte, em janeiro de 1918??? Ela havia sido eleita democraticamente, e a maioria absoluta era composta por representantes da esquerda. Portanto não era "burguesa". Mas como os bolcheviques eram minoria, foi dissolvida pelo governo soviético. E depois, porque os bolcheviques proibiram todos os partidos, com excessão do próprio partido deles??? A revolta que os socialistas revlucionários de esquerda promoveram em julho de 1918, não foi contra o poder soviético e sim contra a manutenção da paz com a Alemanha. E os mencheviques internacionalistas, liderados por Martov, apesar de fazerem oposição ao governo bolchevique, exigindo liberdade de imprensa e de reunião, não participaram dessa revolta e apoiavam o Exército Vermelho em sua luta contra os reacionários de extrema-direita do Exército Branco. Não havia portanto nenhuma justificativa racional, fora o autoritarismo bolchevique, para a absurda introdução do regime de partido único.

O socialismo na versão leninista, ou seja, bolchevique, nada tem de democrático e só pode funcionar como regime de partido único, mesmo que legalmente existam outros partidos, como por exemplo acontece na China, onde existem outros oito partidos além do Partido Comunista Chinês, mas todos sabemos que são apenas decorativos. O mesmo também acontece na Coréia do Norte, onde existem outros dois partidos além do Partido do Trabalho, mas esses dois partidos são ainda mais decorativos do que os partidos existentes na China.

O historiador marxista Jacob Gorender, em "Marxismo sem utopia", faz uma dura critica ao bolchevismo.

"O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornando o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado." (Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43)


Carlos Nelson Coutinho está certo ao dizer que a filosofia marxista não defende regime de partido único, e que o socialismo exige a liberdade de expressão. Mas está errado ao não reconhecer que o socialismo da tradição bolchevique já era uma degeneração do marxismo.

O mais engraçado é que nessa mesma entrevista, respondendo ao mesmo Marcelo Salles, Carlos Nelson Coutinho acaba reconhecendo que Lenin teve responsabilidade no surgimento do stalinismo. O problema é que ele e os demais psolistas, limitam muito a sua critica a Lenin, e por isso acabam prisioneiros do bolchevismo.

"Na época de Marx, ditadura não tinha o sentido de despotismo que passou a ter depois. Ditadura é um instituto do direito romano clássico que estabelecia que, quando havia uma crise social, o Senado nomeava um ditador, que era um sujeito que tinha poderes ilimitados durante um curto período de tempo. Resolvida a crise social, voltava a forma não ditatorial de governo. Então, quando o Marx fala isso, ele insiste muito que é um período transitório: a ditadura vai levar ao comunismo, que para ele é uma sociedade sem Estado. Ele se refere a um regime que tem parlamento, que o parlamento é periodicamente reeleito, e que há a revogabilidade de mandato. Então, essa expressão foi muito utilizada impropriamente tanto por marxistas quanto por antimarxistas. Apesar de que em Lênin eu acho que a ditadura do proletariado assume alguns traços meio preocupantes. Em uma polêmica com o Kautsky, ele diz: ditadura é o regime acima de qualquer lei. Lênin não era Stálin, mas uma afirmação desta abriu caminho para que Stálin exercesse o poder autocrático, fora de qualquer regra do jogo, acima da lei. Tinha lei, tinha uma Constituição que era extremamente democrática, só que não valia nada." (Carlos Nelson Coutinho; revista Caros Amigos)

A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse. O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado socialismo real, foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no marxismo-leninismo.

O autoritarismo leninista, ou bolchevique

"Ao fim e ao cabo, o que se teve foi a pura e simples ditadura do partido único. O proletariado de que se trata não é aquele constituído pelos trabalhadores reais. Estes, como disse Lenin, "não se desembaraçarão facilmente dos seus preconceitos pequeno-burgueses" e, portanto, também precisarão ser "reeducados, através de uma luta prolongada, sobre a base da ditadura do proletariado" (O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Moscou, Ed. Progresso). Do que se trata efetivamente é do partido, isto é, da "expressão dos interesses históricos do proletariado", o qual é chamado a ser o verdadeiro governante. (...)

A consagração de direitos individuais e sociais em lei, classificada pejorativamente na categoria das liberdades formais, seria uma concessão inadmissível à democracia burguesa. Mesmo porque, se a ditadura do proletariado significa democracia para a maioria explorada, isso ocorre não porque essa disponha de meios efetivos de exercício do poder. Resulta tão somente da suposição de que o partido, por expressar os "interesses históricos do proletariado", governa de fato para a maioria, ainda que esta não tenha consciência disso.

De fato, a missão imanente do proletariado só se manifesta enquanto verdade revelada - o marxismo-leninismo - através do partido. A direção do partido, e só ela, é a garantia de que o futuro comunista será efetivamente construído. Ao partido, o proletariado suposto, cabe governar; ao proletariado real, obedecer.

É "natural' que, no limite, tal concepção tome a forma de terrorismo de Estado. Se a ética, entendida como parte integrante da ideologia, é apenas a "ética da classe", não há por que se estabelecerem limites para o emprego da violência nas situações em que os "interesses históricos de classe", os desígnios da história, estiverem em jogo. Ainda quando a contestação venha do proletariado real, desde que ameace o monopólio do poder pelo partido, precisará ser esmagada sem vacilação, como, aliás, ocorreu com o levante de Kronstadt, em 1921."


(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")


Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin. Portanto o stalinismo não foi resultado de uma degeneração do modelo socialista desenvolvido por Lenin, mas sim resultado dos graves erros existentes nesse modelo, que degenerando a concepção marxista da ditadura do proletariado, acabou por transforma-la em ditadura do partido do proletariado, ou seja, ditadura do partido comunista. Essa ditadura se fez presente desde a vitória da revolução e o começo do governo soviético. Não podemos esquecer que em 5 de janeiro de 1918, apenas dois meses após a vitória da revolução, a Assembléia Constituinte que havia sido eleita democraticamente no final de novembro de 1917, mas onde os bolcheviques não tinham maioria, se reuniu pela primeira e última vez, pois foi dissolvida na noite do mesmo dia em um golpe promovido pelo governo dirigido pelos bolcheviques.

A partir desse episódio, o governo bolchevique passou a perseguir outras forças de esquerda(mencheviques, socialistas revolucionários, anarquistas), até que em julho de 1918, após uma revolta promovida pelos socialistas revolucionários de esquerda, todos os partidos foram proibidos, com excessão do Partido Comunista da Rússia(bolchevique). Então os sovietes e os sindicatos se transformaram em correias de transmissão do Partido Comunista. E o pior, após o atentado praticado por uma ativista socialista revolucionária de esquerda contra o lider bolchevique Vladimir Lenin, em agosto de 1918, que o deixou ferido, os bolcheviques lançaram uma política de terrorismo de Estado completamente absurda, pois bastava que algum individuo suspeito de praticar atividades contra-revolucionárias, pertencesse a classe burguesa, para ser preso e executado sem nenhum julgamento. Individuos não pertencentes a burguesia que fossem suspeitos, eram presos e mandados para campos de trabalho forçado. Foi a fase do chamado "TERROR VERMELHO".

Se não bastasse isso, durante a guerra civil, o Exército Vermelho não combateu apenas os contra-revolucionários do Exército Branco e seus aliados das forças estrangeiras(americanos, britanicos, franceses, italianos, japoneses, etc). Também combateu os revolucionários anarquistas do Exército Negro, uma guerrilha camponesa liderada por Nestor Makhno, que havia promovido a reforma agrária no sul da Ucrânia e que teve papel importante na derrota das forças brancas do general Anton Denikin. Além disso, o Exército Vermelho sufocou com extrema violência as revoltas camponesas que ocorriam devido a absurda política do "comunismo de guerra", quando milhares de camponeses foram aprisionados nos primeiros campos de concentração da Europa.

O filósofo marxista Pietro Ingrao, figura histórica do comunismo italiano, fez autocritica e reconheceu ter sido Lenin quem assinou o decreto criando o primeiro campo de concentração na Europa, para aqueles que não compartilhavam suas idéias. Os gulags de Stalin já nasceram com a Revolução de Outubro.

"Já Lenin afirmava a construção violenta do Estado e do poder político, e não se tratava só de uma resposta revolucionária ao sangue do capitalismo. Era uma idéia errada, erradíssima, de abuso e de esmagamento, que também atingiria, cedo ou tarde, uma parte do movimento operário. (...) Os massacres estavam fadados a se voltarem contra os próprios militantes, os próprios filhos."

(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])


Essa política terrorista do leninismo, ou seja, do bolchevismo, que Pietro Ingrao condena, foi usada não somente contra supostos inimigos de classe, mas também contra a própria classe trabalhadora, como demonstra a repressão contra greves e rebeliões populares decorrentes da fome causada pela política do "comunismo de guerra".

"Em 16 de março de 1919, tropas da Cheka invadiram a fábrica Putilov. Mais de 900 trabalhadores que estavam em greve foram presos. Mais de 200 deles foram executados sem julgamento. Na primavera de 1919, ocorreram vários ataques nas cidades de Tula, Orel, Tver, Ivanovo e Astrakhan. Os trabalhadores famintos tentavam obter rações alimentares semelhantes às dos soldados do Exército Vermelho. Eles também exigiram a eliminação de privilégios para os comunistas, a liberdade de imprensa e eleições livres. Todos os ataques foram impiedosamente reprimida pela Cheka com prisões e execuções.

Na cidade de Astrakhan, os grevistas e os soldados do Exército Vermelho que se juntaram a eles foram carregados em barcaças, e em seguida, jogados no Volga com pedras em torno de seus pescoços. Entre 2000 e 4000 foram assassinados entre 12 e 14 de março de 1919." (O Livro Negro do Comunismo)


E o principal, a brutal repressão ao levante do soviet de Kronstadt, onde os bolcheviques usaram da calúnia infame ao chamar de "agentes do imperialismo e da contra-revolução", os revoltosos que sempre estiveram ao lado da causa socialista, inclusive tendo sido chamados de "honra e glória" da revolução, pelo lider do Exército Vermelho, o bolchevique Leon Trotsky, e que se rebelavam para defender uma democracia socialista, onde o poder residisse nos sovietes e não em nenhum partido, e houvesse liberdade de imprensa, pluripartidarismo e eleições livres.

A revolucionária marxista polaco-alemã Rosa Luxemburgo, que em hipótese alguma pode ser classificada como "revisionista" ou "oportunista", sempre criticou Lenin e o bolchevismo, tanto que no clássico "Questões de organização da social-democracia russa", escrito em 1904, criticou o modelo autoritario de partido defendido por Lenin.

Apesar de ter apoiado a Revolução de Outubro, inclusive se solidarizando com os bolcheviques, Rosa alertou para os riscos desse autoritarismo promovido por Lenin e pelos bolcheviques. Ao contrário de muita gente na esquerda, Rosa Luxemburgo não se deixou levar por uma visão acritica, beata, e de sacristia sobre esse processo revolucionário. Pelo contrário, manteve sua critica ao que achava errado no bolchevismo, e no clássico "A Revolução Russa", escrito em 1918, Rosa Luxemburgo alertou para as as consequências do autoritarismo bolchevique.

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")


Segundo o cientista social Michael Löwy, um dos mais importantes teóricos do marxismo na atualidade: "Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar "como que por magia, a mais bela das democracias", Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária. É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")

O regime bolchevique preparou o terreno para o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; em Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo)

A esquerda precisa romper com a tradição autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia. Por isso deve abandonar a idéia equivocada de que os fins justificam os meios, e principalmente, ter na radicalidade democrática, a base de sua atuação política.

Além de resgatar os clássicos de Marx e Engels, a esquerda precisa buscar em Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, na chamada "Escola de Frakfurt", no eurocomunismo, e na Teologia da Libertação, as bases na qual se fundamentar sobre o ponto de vista filosófico-ideológico, construindo uma alternativa real ao capitalismo, possibilitando assim a retomada da luta pelo fim da exploração do homem pelo homem.

"Está mais do que provado que a construção de uma sociedade nova é impensável sem a adesão consciente do povo. As supostas tentativas de fazê-la através de métodos impositivos, da manipulação ou do emprego de aparatos coercitivos resultaram inevitavelmente na Construção da antiliberdade; uma antiliberdade que mal sobrevive à própria crise, como é notário em todos os países do "socialismo real".

Portanto, o novo Estado, aquele que deverá emergir da superação do Estado capitalista, precisará ser concebido como um Estado socialista necessariamente democrático e de direito, submetido a uma sociedade civil autônoma e plural, bem desenvolvida e articulada. Trata-se de aprofundar o caminho já aberto por Gramsci.

Um item destacado refere-se à teoria econômica do socialismo. A experiência do "socialismo real" deixa evidente que a gestão burocrática ultra centralizada é fonte inesgotável de desperdício, destruição do meio ambiente, corrupção e ineficiência.

O neoliberalismo vem se apoiando nessa evidência para tentar comprovar o valor supremo da livre iniciativa. Resistir a essa onda com a reiteração do estatismo, além de realimentar os fatores de destruição e de crise, é autocondenar-se à total defensiva ideológica. (...)

O que significa que, numa sociedade socialista renovada, não deverá haver lugar nem para a livre iniciativa, que se alimenta do culto ao indivíduo empreededor-consumidor, nem para o estatismo, que se baseia no enquadramento do indivíduo produtor dentro da regra estabelecida através do plano."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")


E mais, a bem sucedida experiência da Nova Política Economica, adotada pelos soviéticos entre 1921 e 1928, assim como as recentes experiências do "Doi Moi" no Vietnã, e do "socialismo de mercado" na China, demonstram que o socialismo não pode ser estabelecido por decreto. Portanto a socialização da propriedade dos meios de produção, distribuição e troca deve ser processual, e não algo imposto da noite para o dia. O socialismo precisa se fundamentar no consenso, e não somente na coerção.

"O socialismo não pode, nem deve eliminar o mercado de imediato. Precisará conviver com o mercado e tirar proveito dele durante um tempo certamente longo. Só que, para ser compatível com o socialismo, precisará ser um mercado regulado, direcionado pelo planejamento do Estado e refreado no que se refere aos aspectos socialmente negativos." (Jacob Gorender; em Teoria e Debate nº 16)


A REBELIÃO DE TAMBOV

A rebelião de Tambov foi uma das maiores rebeliões do campesinato russo contra o governo bolchevique durante a Guerra Civil. Foi dirigida por um antigo membro do Partido Socialista Revolucionário, Alexander Antonov, que havia apoido a Revolução de Outubro em 1917, mas rompeu com o governo bolchevique em abril de 1918, devido a política de requisições forçadas ao campesinato imposta pelo "Comunismo de guerra".

A revolta teve inicio em 19/08/1920, e foi organizada pela União dos Trabalhadores Camponeses, dirigida por Antonov. O governo bolchevique foi abolido na região de Tambov, e foi convocada uma Assembléia Constituinte, que decidiu retomar as terras para os camponeses.

30 mil soldados do Exército Vermelho, comandados pelo marechal Mikhail Tukhachevsky, foram enviados para combater a revolta. Os bolcheviques usaram artilharia pesada contra os camponeses rebelados, e pior, a partir de junho de 1921, com autorização do governo bolchevique, o Exército Vermelho passou a usar armas quimicas contra os camponeses, que eram chamados de "bandidos" pelos bolcheviques. Sete campos de concentração foram criados pelos bolcheviques, para aprisionar os rebeldes presos(50 mil prisioneiros passaram por esses campos, a maioria mulheres e crianças).

A revolta chegou ao fim no final de 1921, e cerca de 200 mil camponeses foram mortos. Em 24/06/1922, Alexander Antonov foi assassinado pela Cheka, a policia política dos bolcheviques.

(Sobre a Rebelião de Tambov, procurem na wikipédia em espanhol, o verbete Rebelión de Tambov)

A REVOLTA DE KRONSTADT

Em fevereiro de 1921, eclodiu uma greve em Petrogrado. O motivo era a fome, causada pelo fracasso da desastrosa política do "Comunismo de Guerra". Então no mês seguinte, o soviet dos marinheiros de Kronstadt se rebelou, em apoio a greve de Petrogrado.

Os marinheiros do porto de Kronstadt - revolucionários de primeira hora, chamados por Trotsky de "honra e glória" da Revolução - se amotinaram contra o governo bolchevique. Uma de suas manifestações, o documento "Por que nós combatemos", dá uma idéia de como os princípios da revolução operária tinham sido traídos:

"Ao fazer a Revolução de Outubro, a classe operária esperava obter sua emancipação. Mas o resultado foi uma escravidão ainda maior da individualidade humana. O poder da monarquia policialesca passou à mão dos usurpadores - os comunistas - que, em lugar de dar liberdade ao povo, reservou-lhe o medo dos cárceres da Tcheka, cujos horrores ultrapassam em muito os métodos da gendarmeria czarista. [...] Tornou-se cada vez mais claro, e hoje torna-se evidente, que o Partido Comunista não é, como fingiu ser, o defensor dos trabalhadores. Os interesses da classe operária lhes são estranhos. Depois de haver conquistado o poder, há apenas uma preocupação: não perdê-lo."

Sublevados, em março de 1921, os marinheiros de Kronstadt estavam prontos para pegar em armas contra os comunistas, declarando: "Aqui [em Kronstadt] foi içada a bandeira da revolta contra a tirania dos três últimos anos, contra a opressão da autocracia comunista que fez empalidecer os três séculos de jugo monarquista. [...] É aqui em Kronstadt que foi lançada a pedra fundamental da Terceira Revolução, que romperá as últimas amarras do trabalhador e lhe abrirá o novo e grande caminho da edificação socialista".

Ironicamente, essa terceira Revolução foi massacrada por Trotsky, que era o comandante supremo do Exército Vermelho e assinou a ordem para reprimir os revoltosos. Entretanto a ironia da História é que anos mais tarde, em 1927, ele também iria se rebelar contra a ditadura do Partido Comunista. Como os marinheiros de Kronstadt, ele também seria massacrado treze anos depois, em 1940, quando foi assassinado por um agente stalinista no México, onde encontrava-se exilado.

(Sobre esse heróico levante socialista contra a tirânia bolchevique, vejam http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolta_de_Kronstadt)

A Pérola

A Pérola
Pe. Alfredo J. Gonçalves *

Era uma vez... Eu, você, ele, nós, todos... Vivíamos no mundo fantástico das novidades. Corríamos atrás delas com o mesmo afã do sedento que busca água fresca. Surfávamos na onda dos últimos lançamentos da moda. Cores e sabores, ruídos e imagens, luzes e sons nos embriagavam de prazer. Era só procurar nas lojas das ruas e shopping centers, profusamente iluminadas, e aí encontrávamos o que estávamos procurando.

Aliás, a publicidade e a propaganda, orientadas pelas técnicas mais sofisticadas do marketing, nos antecipavam o que deveríamos buscar. Não precisávamos quebrara a cabeça: o mercado se encarregava de descobrir novas necessidades, estimular nossos desejos e oferecer tudo isso revestido de embalagens sedutoras e irrecusáveis. Digamos de passagem que, via de regra, os invólucros custavam bem mais caro do que o conteúdo. Tanta era a preocupação de atrair novos clientes.

Porém, os objetos tinham curto prazo de validade. Não que estivessem estragados ou quebrados, mas é que a todo tempo surgiam novos modelos. Era preciso antecipar-se aos demais. Dominava a lei da moda e não podíamos ficar ultrapassados. O último carro, o último computador, o último celular, a última blusa, a última bolsa, o último relógio, o último sapato, a última calça ou vestido, o último modelo de apartamento... Em tudo, imperava a última novidade. Sorte que a "telinha" nos poupava o trabalho de escolher: despejava sobre nossas salas uma avalanche estridente de objetos com brilho novo, recém-saídos da fábrica.

Mas, da mesma forma que os objetos, também nossa satisfação tinha prazo curto de validade. A sede de algo inédito voltava com a força do desejo represado. Navegávamos pelas ruas, pelos centros comerciais e pela Internet como seres famintos atrás de novidades. Os enfeites, o design e o colorido das lojas nos fascinavam. Era preciso satisfazer as novas necessidades que nasciam em nós com a velocidade eletrizante da informática. Ofuscados por esse brilho, nos movíamos cegos e surdos.

Todo esse cenário seguia as regras de uma espécie de credo: produzir, comprar, consumir, ter, aparecer, descartar... E assim indefinidamente. A roda não podia parar. A produção gerava novas necessidades e estas, por sua vez, aceleravam o processo de produção. No coração desse círculo de ferro, os especialistas do mercado e do marketing se batiam como loucos para inventar, desenhar e divulgar o resultado de sua criatividade cada vez mais fecunda.

Valiam as mesmas regras para as relações pessoais, humanas. Também estas se viam atropeladas pelo ritmo alucinante da sociedade de consumo. Era preciso ser muito inovador e criativo para manter por largo prazo uma amizade, um namoro, um casamento. Descartavam-se laços primários como se descartavam objetos, como se troca de roupa. Coisas e pessoas sofriam da mesma provisoriedade. Predominava o "império do efêmero" (Gilles Lipovetsky).

Em lugar da relação eu-tu, do face-a-face, criavam-se relações de terceiro grau. O telefone, a Internet, o orkut, o twitter, a facilidade dos transportes e das comunicações permitiam fugir aos encontros olho-no-olho e estabelecer contatos à distância. Estes nos eximiam dos compromissos duradouros, eram facilmente descartáveis. O verbo namorar foi substituído pelo verbo ficar, onde novamente o compromisso não era a coisa mais necessária. Tudo se volatilizava, tudo era virtual, "tudo que era sólido se desmanchava no ar" (Marx-Engels).

Ao lado disso, crescia o culto do "eu" e do corpo. Aumentava paralelamente o número de academias e de drogas para emagrecer. Ganhavam terreno as celebridades televisivas, esportivas ou cinematográficas. O conceito de personalidade centrava-se sobre o próprio umbigo. Exacerbava-se o individualismo e o hedonismo. A tirania da beleza perseguia os corpos esqueléticos das meninas que participavam dos eventos fashion. Por todo lado, imperava a "tirania do prazer" (Jan-Claude Guillebaud).

Até que um dia... Um dia resolvi fechar os olhos e ouvidos a esse assédio da mídia e do mercado. Estava saturado do bombardeio diário de novidades que, longe de matar a sede, a aguçavam ainda mais. Cada vez eram necessários mais objetivos para preencher o vazio que os anteriores deixavam. E esse vazio só fazia aprofundar-se. Acabei caindo num poço sem fundo e sem remédio. Frustrações, tédio, desilusão e fastídio era minha única colheita.

Busquei o silêncio, a reflexão, a meditação. No monte de lixo de tantos desejos superficiais e supérfluos, tratei de desvendar o desejo mais profundo de meu ser. Que mais queriam meu coração e minha alma? Deparei-me com a necessidade de amar e ser amado, único caminho da felicidade. Entendi o que significa passar pela porta estreita do Evangelho. Compreendi que a porta larga, aparentemente livre e iluminada, leva à escravidão dos impulsos, paixões desejos imediatos. A porta estreita, ao contrário, embora às vezes obscura, abre perspectivas e luzes insuspeitáveis. Laboriosamente, encontrei-me com a sentença de Santo Agostinho: "O homem veio de Deus e não repousa em paz enquanto não voltar a descansar Nele". Aí estava meu maior desejo!

Sempre no silêncio da oração e da meditação, descobri ainda que esse desejo do totalmente Outro passa necessariamente pelo encontro com o outro humano. Que a busca do Transcendente passa pelo encontro com o diferente. Entendi que era impossível seguir a rota desse desejo mais profundo de forma solitária. A busca implicava, por um lado, combater a violência e a discórdia, as assimetrias e as desigualdades sociais, a miséria e a fome; e, por outro, construir novas relações de solidariedade, justiça e comunhão. Fazer dos estranhos e estrangeiros novos irmãos, deixando-se desafiar por suas interpelações.

Encontrada a pérola, pus-me fatigosamente a cultivá-la. Perco-a com freqüência, é preciso remover novamente o entulho, recomeçar tudo de novo. Ele se revela e se esconde. Mas pelo menos descobri senão a água viva, pelo menos o caminho da fonte.

*Pe. Alfredo J. Gonçalves é Assessor das Pastorais Sociais.