"Socialismo e liberdade"

"Socialismo e liberdade"
"Proletários de todos os países, uni-vos!" (Karl Marx e Friedrich Engels; Manifesto do Partido Comunista)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O socialismo precisa ser refundado

Apesar do fracasso do chamado "socialismo real", é inegável a contribuição dos comunistas para o desenvolvimento da democracia, ao organizar os trabalhadores para lutar contra a exploração capitalista e acima de tudo, ao lutar contra a barbárie nazi-fascista na Europa e na Ásia. O socialismo burocratico oriundo da tradição autoritaria do bolchevismo precisa ser eliminado, até porque deturpou o conceito marxista da ditadura do proletariado, mas em hipótese alguma se pode eliminar o projeto socialista em si, com sua luta em favor da igualdade e pelo fim da exploração do homem pelo homem. O socialismo precisa ser refundado, com a esquerda resgatando o melhor do pensamento marxista, ao mesmo tempo que rompendo com o dogmatismo, enxergue as novas realidades da luta de classes no século XXI.

"Socialismo não é um ideal ético ao qual tendemos para melhorar a ordem vigente. O socialismo é uma proposta de um novo modo de produção, de uma nova forma de sociabilidade, e nesse sentido eu acho que o socialismo é, mesmo no século 21, uma proposta de superar o capitalismo. Novidades surgiram, por exemplo: quem leu o Manifesto Comunista, como eu, vê que Marx e Engels acertaram em cheio na caracterização do capitalismo. A ideia da globalização capitalista está lá no Manifesto Comunista, o capitalismo cria um mercado mundial, expande e vive através de crises. Essa ideia de que a crise é constitutiva do capitalismo está lá em Marx. Mas há um ponto que nós precisamos rever em Marx, e rever certas afirmações, que é o seguinte: Quem é o sujeito revolucionário? Nós imaginamos construir uma nova ordem social. Naturalmente, para ser construída, tem que ter um sujeito. Para Marx, era a classe operária industrial fabril, e ele supunha, inclusive, que ela se tomaria maioria da sociedade. Acho que isso não aconteceu. O assalariamento se generalizou, hoje praticamente todas as profissões são submetidas à lei do assalariamento, mas não se configurou a criação de uma classe operária majoritária. Pelo contrário, a classe operária tem até diminuído. Então, eu diria que este é um grande desafio dos socialistas hoje. Hoje em dia tem aquele sujeito que trabalha no seu gabinete em casa gerando mais-valia para alguma empresa, tem o operário que continua na linha de montagem .. Será que esse cara que trabalha no computador em casa se sente solidário com o operário que trabalha na linha de montagem? Você vê que é um grande desafio. Como congregar todos esses segmentos do mundo do trabalho permitindo que eles construam uma consciência mais ou menos unificada de classe e, portanto, se ponham como uma alternativa real à ordem do capital?" (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

O cientista político Carlos Nelson Coutinho, que na minha opinião é um dos grandes nomes do marxismo em nosso país, deixa bem claro a necessidade de atualizar o pensamento marxista, rompendo com o dogmatismo que aprisiona a esquerda socialista ao século passado. Coutinho é mais otimista do que eu, pois afirma que as condições objetivas para o socialismo já estão presentes. Não concordo com ele, mas reconheço que a luta pela redução da jornada de trabalho é um fator fundamental na luta pela conquista da hegemonia na sociedade. E não somente a luta pela redução para 40 horas, mas acima de tudo a luta pela redução da jornada para 36 horas semanais. A CUT e a CTB não podem se limitar a luta pelas 40 horas, que diga-se de passagem já deveria ter sido aprovada por um governo que se diz democrático e popular.

"Eu tenho sempre dito que as condições objetivas do socialismo nunca estiveram tão presentes. Prestem atenção, o Marx, no livro 3 do "Capital", diz o seguinte: O comunismo implica na ampliação do reino da liberdade e o reino da liberdade é aquele que se situa para além da esfera do trabalho, é o reino do trabalho necessário, é o reino onde os homens explicitarão suas potencialidades, é o reino da práxis criadora. Até meio romanticamente ele chega a dizer no livro "A Ideologia Alemã" que o socialismo é o lugar onde o homem de manhã caça, de tarde pesca e de noite faz critica literária, está liberto da escravidão da divisão do trabalho. E ele diz que isso só pode ser obtido com a redução da jornada de trabalho. O capitalismo desenvolveu suas forças produtivas a tal ponto que isso se tornou uma possibilidade, a redução da jornada de trabalho, o que eliminaria o problema do desemprego. O cara trabalharia 4 horas por dia, teria emprego pata todos os outros. E por que isso não acontece? Porque as relações sociais de produção capitalista não estão interessadas nisso, não estão interessadas em manter o trabalhador com o mesmo salário e uma jornada de trabalho muito menor. Então, eu acho que as condições para que a jornada de trabalho se reduza e, portanto, se crie espaços de liberdade para a ação, para a práxis criadora dos homens, são um fenômeno objetivo real hoje no capitalismo. Mas as condições subjetivas são muito desfavoráveis. A morfologia do mundo do trabalho se modificou muito .. Muita gente vive do trabalho com condições muito diferenciadas, o que dificulta a percepção de que eles são membros de uma mesma classe social. Então, esse é um desafio que o socialismo no século 21 deve enfrentar." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Uma das prioridades da esquerda, em sua luta pela construção de uma sociedade socialista no século XXI, é reconhecer a necessidade de conciliar socialismo com liberdade e democracia. Carlos Nelson Coutinho toca nessa questão na entrevista concedida a Caros Amigos.

"Um desafio também fundamental é repensar a questão da democracia no socialismo. Eu diria que, em grande parte, o mal chamado "socialismo real" fracassou porque não deu uma resposta adequada à questão da democracia. Eu acho que socialismo não é só socialização dos meios de produção - nos países do socialismo real, na verdade, foi estatização - mas é também socialização do poder político. E nós sabemos que o que aconteceu ali foi uma monopolização do poder político, uma burocratização partidária que levou a um ressecamento da democracia. A meu ver, aquilo foi uma transição bloqueada. Eu acho que os países socialistas não realizaram o comunismo, não realizaram sequer o socialismo e temos que repensar também a relação entre socialismo e democracia. Meu texto, "Democracia como valor universal", não é um abandono do socialismo. Era apenas uma maneira de repensar o vinculo entre socialismo e democracia. Era um artigo ao mesmo tempo contra a ditadura que ainda existia e contra uma visão "marxista-leninista", o pseudônimo do stalinismo, que o partido ainda tinha da democracia. Acho que este foi o limite central da renovação do partido." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Nessa mesma entrevista, Marcelo Salles pergunta: "E nesse "Democracia como valor universal", você disse recentemente que defende uma coisa que não foi muito bem entendida: socialismo como condição da plena realização da democracia ..."

Coutinho respondeu: "Uma alteração que eu faria no velho artigo era colocar não democracia como valor universal, mas democratização como valor universal. Para mim a democracia é um processo, ela não se identifica com as formas institucionais que ela assume em determinados contextos históricos. A democratização é o processo de crescente socialização da política com maior participação na política, e, sobretudo, a socialização do poder político. Então, eu acredito que a plena socialização do poder político, ou seja, da democracia, só pode ocorrer no socialismo, porque numa sociedade capitalista sempre há déficit de cidadania. Em uma sociedade de classes, por mais que sejam universalizados os direitos, o exercício deles é limitado pela condição classista das pessoas. Neste sentido, para a plena realização da democracia, o autogoverno da sociedade só pode ser realizado no socialismo. Então, eu diria que sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia. Acho que as duas coisas devem ser sublinhadas com igual ênfase."

Nessa entrevista, Carlos Nelson Coutinho afirma que falta a esquerda um projeto de socialismo. Concordo com ele, mas afirmo que isso é resultado da incapacidade da esquerda em romper com os graves erros do modelo bolchevique, que a faz limitar-se a criticar apenas o stalinismo, não promovendo assim uma autêntica autocritica. E também tem a incapacidade da esquerda em romper com o dogmatismo, que a faz transformar o pensamento marxista em uma espécie de religião.

"Do ponto de vista nosso, da esquerda, uma das razões da crise do socialismo, das dificuldades que vive o socialismo hoje, é a falta de um projeto. A social-democracia já abandonou o socialismo há muito tempo, e nos partidos de esquerda antagonistas ao capitalismo há uma dificuldade de formulação de um projeto exequível de socialismo. Na maioria dos casos, esses partidos defendem a permanência do Estado do bem-estar social que está sendo desconstruído pelo liberalismo. É uma estratégia defensivista. Essa é outra condição subjetiva que falta, a formulação clara de um projeto socialista." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Um partido comunista que eu considero estar buscando se libertar dos erros do bolchevismo, e que por isso possui um perfil democrático, garantindo o direito de tendências permanentes se organizarem em seu interior, é o Partido da Refundação Comunista, na Itália. Eles organizam junto com o Partido dos Comunistas Italianos, e com Socialismo 2000, a aliança Federação de Esquerda(http://www.federazionedellasinistra.com/).

Refundação Comunista é o partido do filósofo marxista Pietro Ingrao, que fez uma autocritica digna de aplausos e elogio. Ele reconheceu que Lenin e os bolcheviques foram responsaveis pelo surgimento do totalitarismo stalinista.

"Já Lenin afirmava a construção violenta do Estado e do poder político, e não se tratava só de uma resposta revolucionária ao sangue do capitalismo. Era uma idéia errada, erradíssima, de abuso e de esmagamento, que também atingiria, cedo ou tarde, uma parte do movimento operário. (...) Os massacres estavam fadados a se voltarem contra os próprios militantes, os próprios filhos.(...)

Antes nos iludíamos dizendo que havia uma diferença substancial entre os dois personagens centrais da história do comunismo e considerávamos Stalin o traidor dos ideais de Lenin. Não era verdade. Hoje, por sabermos a verdade, podemos captar melhor as diferenças entre Lenin e Stalin, a partir daquela que considero a mais significativa. Lenin, com sua revolução, teve em mente o poder dos sovietes e do partido, conquistado e defendido com a violência. Em vez disso, Stalin, com métodos ainda mais ferozes em relação a Lenin, tem em mente só o poder pessoal e do seu clã." (Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])

A autocrítica de Ingrao é radical, assinala a natureza, as raízes da ideologia comunista, e a investigação do erro não se reduz à leitura do passado, mas se torna um instrumento para olhar adiante. Mesmo que, noventa e dois anos depois, a conta da verdade seja muito alta.

"Os gulags não foram uma fábula, mas não vejo por que hoje deveria assumi-los no meu patrimônio, no meu sentimento de comunista, agora que não tenho nem mesmo o álibi de ‘não saber’. Ao lado desta derivação, o movimento comunista no século XX arrastou classes sociais inteiras para a luta política e social, e grande parte do crescimento da democracia, pelo menos na Europa, está ligada a esta participação, a esta batalha. Por que não deveria revisitar e reexaminar nossa história, ver as luzes e as sombras? Enfraqueço-me? Penso exatamente o contrário: a autocrítica me reforça. O arrependimento é uma palavra que não pertence à minha linguagem, tem um sabor de sacristia. Mas, se arrepender-se significa reconhecer os erros, então não tenho medo desta palavra. Tentar compreender onde erramos me ajuda a viver, a me sentir mais forte, a olhar para a frente. A reconstruir o passado para dar uma indicação sobre o futuro: pode-se aprender com os erros. E no horizonte futuro resta a necessidade de uma resposta às exigências, decisivas, de sentido da vida, de horizonte, num mundo vergado como então, como em todo o século XX, pela maldição de uma guerra. Passei uma vida batendo-me por coisas essenciais: o direito de se alimentar, crescer, se instruir, se cuidar, ser criativo no próprio trabalho. O movimento operário, no curso de um século, cresceu no contexto da reivindicação de necessidades fundamentais, a começar pelo grande tema do resgate do trabalho, e da exigência destas coisas nasceu a ideologia comunista, com seus erros, suas culpas, seus delitos. A violência armada, infelizmente, teve um lugar na história e na ideologia do movimento comunista. Em nome desta violência, o homem foi posto sob cadeias, quando nós o queríamos livre. Nossa derrota nasceu também daqui. Mas aquelas exigências permanecem presentes, continuam a ser atuais, e alguém terá de responder a elas..."


(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])

A esquerda precisa seguir o exemplo dessa autocritica de Pietro Ingrao. Precisa romper com a tradição autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia.

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