"Socialismo e liberdade"

"Socialismo e liberdade"
"Proletários de todos os países, uni-vos!" (Karl Marx e Friedrich Engels; Manifesto do Partido Comunista)

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Socialismo sem liberdade, não pode ser socialismo

Eu tenho muito respeito pela obra do cientista político Carlos Nelson Coutinho, afinal foi um dos primeiros intelectuais marxistas em nosso país, a afirmar que é necessário conciliar socialismo e democracia, se opondo ao modelo socialista autoritario e burocratico que existia na URSS e no Leste Europeu. Entretanto eu vejo nele uma dificuldade muito grande em reconhecer que foi Lenin, o responsável pela construção desse socialismo autoritário e burocratico. Em entrevista publicada na revista Caros Amigos, Marcelo Salles pergunta a ele: "Estão sempre dizendo que não teria liberdade de expressão no socialismo, porque o Estado seria muito forte, e teria o partido único ..."

Carlos Nelson Coutinho responde: "Em primeiro lugar, não é necessário que no socialismo haja partido único, e não é desejável, até porque, poucas pessoas sabem, mas no início da revolução bolchevique o primeiro governo era bipartidário. Era o partido bolchevique e o partido social-revolucionário de esquerda. Depois, eles brigaram e ficou um partido só. Mas não é necessário que haja monopartidarismo. Segundo, Rosa Luxemburgo, marxista, comunista, que apoiou a revolução bolchevique, dizia o seguinte: 'liberdade de pensamento é a liberdade de quem pensa diferente de nós'. Então, não há na tradição marxista a ideia de que não haja liberdade de expressão, mas uma coisa é liberdade de expressão e outra coisa é o monopólio da expressão. Liberdade de expressão sim, contanto que não seja uma falsa liberdade de expressão. Eu acho que o socialismo é condição de uma assertiva liberdade de expressão." (Carlos Nelson Coutinho, na continuação da resposta a Marcelo Salles, revista Caros Amigos)"

Oras, eu conheço bem a história da Revolução Russa e sei perfeitamente que logo após a vitória dos bolcheviques, em outubro de 1917(segundo o calendário juliano), eles excluiram a participação da ala internacionalista dos mencheviques do governo soviético, estabelecido pelos próprios bolcheviques após derrubarem o governo provisório, mesmo sabendo que os mencheviques internacionalistas também faziam oposição a Primeira Guerra Mundial e ao governo provisório. O próprio Trotsky afirmou para Yuri Martov, lider dos mencheviques internacionalistas, que o lugar deles era na "lata de lixo da história".

E mais, os socialistas revolucionários de esquerda realmente participaram do governo soviético, mas de forma minoritaria. E a briga que Coutinho se refere ocorreu em março de 1918(calendário gregoriano), ou seja, apenas quatro meses após a revolução. E essa briga ocorreu pela oposição dos socialistas revolucionários de esquerda ao Tratado de Paz de Brest Litovsk, que tirou a Rússia da Primeira Guerra Mundial, cedendo grande parte de seu território aos alemães. Portanto a quem Coutinho quer enganar??? Os bolcheviques nunca toleraram a democracia, enquanto os socialistas revolucionários de esquerda eram passivos e obedeciam ao que os bolcheviques mandavam, tudo bem. Mas quando passaram a discordar....

Se os bolcheviques eram tão democráticos, porque dissolveram a Assembléia Constituinte, em janeiro de 1918??? Ela havia sido eleita democraticamente, e a maioria absoluta era composta por representantes da esquerda. Portanto não era "burguesa". Mas como os bolcheviques eram minoria, foi dissolvida pelo governo soviético. E depois, porque os bolcheviques proibiram todos os partidos, com excessão do próprio partido deles??? A revolta que os socialistas revlucionários de esquerda promoveram em julho de 1918, não foi contra o poder soviético e sim contra a manutenção da paz com a Alemanha. E os mencheviques internacionalistas, liderados por Martov, apesar de fazerem oposição ao governo bolchevique, exigindo liberdade de imprensa e de reunião, não participaram dessa revolta e apoiavam o Exército Vermelho em sua luta contra os reacionários de extrema-direita do Exército Branco. Não havia portanto nenhuma justificativa racional, fora o autoritarismo bolchevique, para a absurda introdução do regime de partido único.

O socialismo na versão leninista, ou seja, bolchevique, nada tem de democrático e só pode funcionar como regime de partido único, mesmo que legalmente existam outros partidos, como por exemplo acontece na China, onde existem outros oito partidos além do Partido Comunista Chinês, mas todos sabemos que são apenas decorativos. O mesmo também acontece na Coréia do Norte, onde existem outros dois partidos além do Partido do Trabalho, mas esses dois partidos são ainda mais decorativos do que os partidos existentes na China.

O historiador marxista Jacob Gorender, em "Marxismo sem utopia", faz uma dura critica ao bolchevismo.

"O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornando o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado." (Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43)


Carlos Nelson Coutinho está certo ao dizer que a filosofia marxista não defende regime de partido único, e que o socialismo exige a liberdade de expressão. Mas está errado ao não reconhecer que o socialismo da tradição bolchevique já era uma degeneração do marxismo.

O mais engraçado é que nessa mesma entrevista, respondendo ao mesmo Marcelo Salles, Carlos Nelson Coutinho acaba reconhecendo que Lenin teve responsabilidade no surgimento do stalinismo. O problema é que ele e os demais psolistas, limitam muito a sua critica a Lenin, e por isso acabam prisioneiros do bolchevismo.

"Na época de Marx, ditadura não tinha o sentido de despotismo que passou a ter depois. Ditadura é um instituto do direito romano clássico que estabelecia que, quando havia uma crise social, o Senado nomeava um ditador, que era um sujeito que tinha poderes ilimitados durante um curto período de tempo. Resolvida a crise social, voltava a forma não ditatorial de governo. Então, quando o Marx fala isso, ele insiste muito que é um período transitório: a ditadura vai levar ao comunismo, que para ele é uma sociedade sem Estado. Ele se refere a um regime que tem parlamento, que o parlamento é periodicamente reeleito, e que há a revogabilidade de mandato. Então, essa expressão foi muito utilizada impropriamente tanto por marxistas quanto por antimarxistas. Apesar de que em Lênin eu acho que a ditadura do proletariado assume alguns traços meio preocupantes. Em uma polêmica com o Kautsky, ele diz: ditadura é o regime acima de qualquer lei. Lênin não era Stálin, mas uma afirmação desta abriu caminho para que Stálin exercesse o poder autocrático, fora de qualquer regra do jogo, acima da lei. Tinha lei, tinha uma Constituição que era extremamente democrática, só que não valia nada." (Carlos Nelson Coutinho; revista Caros Amigos)

A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse. O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado socialismo real, foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no marxismo-leninismo.

O autoritarismo leninista, ou bolchevique

"Ao fim e ao cabo, o que se teve foi a pura e simples ditadura do partido único. O proletariado de que se trata não é aquele constituído pelos trabalhadores reais. Estes, como disse Lenin, "não se desembaraçarão facilmente dos seus preconceitos pequeno-burgueses" e, portanto, também precisarão ser "reeducados, através de uma luta prolongada, sobre a base da ditadura do proletariado" (O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Moscou, Ed. Progresso). Do que se trata efetivamente é do partido, isto é, da "expressão dos interesses históricos do proletariado", o qual é chamado a ser o verdadeiro governante. (...)

A consagração de direitos individuais e sociais em lei, classificada pejorativamente na categoria das liberdades formais, seria uma concessão inadmissível à democracia burguesa. Mesmo porque, se a ditadura do proletariado significa democracia para a maioria explorada, isso ocorre não porque essa disponha de meios efetivos de exercício do poder. Resulta tão somente da suposição de que o partido, por expressar os "interesses históricos do proletariado", governa de fato para a maioria, ainda que esta não tenha consciência disso.

De fato, a missão imanente do proletariado só se manifesta enquanto verdade revelada - o marxismo-leninismo - através do partido. A direção do partido, e só ela, é a garantia de que o futuro comunista será efetivamente construído. Ao partido, o proletariado suposto, cabe governar; ao proletariado real, obedecer.

É "natural' que, no limite, tal concepção tome a forma de terrorismo de Estado. Se a ética, entendida como parte integrante da ideologia, é apenas a "ética da classe", não há por que se estabelecerem limites para o emprego da violência nas situações em que os "interesses históricos de classe", os desígnios da história, estiverem em jogo. Ainda quando a contestação venha do proletariado real, desde que ameace o monopólio do poder pelo partido, precisará ser esmagada sem vacilação, como, aliás, ocorreu com o levante de Kronstadt, em 1921."


(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")


Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin. Portanto o stalinismo não foi resultado de uma degeneração do modelo socialista desenvolvido por Lenin, mas sim resultado dos graves erros existentes nesse modelo, que degenerando a concepção marxista da ditadura do proletariado, acabou por transforma-la em ditadura do partido do proletariado, ou seja, ditadura do partido comunista. Essa ditadura se fez presente desde a vitória da revolução e o começo do governo soviético. Não podemos esquecer que em 5 de janeiro de 1918, apenas dois meses após a vitória da revolução, a Assembléia Constituinte que havia sido eleita democraticamente no final de novembro de 1917, mas onde os bolcheviques não tinham maioria, se reuniu pela primeira e última vez, pois foi dissolvida na noite do mesmo dia em um golpe promovido pelo governo dirigido pelos bolcheviques.

A partir desse episódio, o governo bolchevique passou a perseguir outras forças de esquerda(mencheviques, socialistas revolucionários, anarquistas), até que em julho de 1918, após uma revolta promovida pelos socialistas revolucionários de esquerda, todos os partidos foram proibidos, com excessão do Partido Comunista da Rússia(bolchevique). Então os sovietes e os sindicatos se transformaram em correias de transmissão do Partido Comunista. E o pior, após o atentado praticado por uma ativista socialista revolucionária de esquerda contra o lider bolchevique Vladimir Lenin, em agosto de 1918, que o deixou ferido, os bolcheviques lançaram uma política de terrorismo de Estado completamente absurda, pois bastava que algum individuo suspeito de praticar atividades contra-revolucionárias, pertencesse a classe burguesa, para ser preso e executado sem nenhum julgamento. Individuos não pertencentes a burguesia que fossem suspeitos, eram presos e mandados para campos de trabalho forçado. Foi a fase do chamado "TERROR VERMELHO".

Se não bastasse isso, durante a guerra civil, o Exército Vermelho não combateu apenas os contra-revolucionários do Exército Branco e seus aliados das forças estrangeiras(americanos, britanicos, franceses, italianos, japoneses, etc). Também combateu os revolucionários anarquistas do Exército Negro, uma guerrilha camponesa liderada por Nestor Makhno, que havia promovido a reforma agrária no sul da Ucrânia e que teve papel importante na derrota das forças brancas do general Anton Denikin. Além disso, o Exército Vermelho sufocou com extrema violência as revoltas camponesas que ocorriam devido a absurda política do "comunismo de guerra", quando milhares de camponeses foram aprisionados nos primeiros campos de concentração da Europa.

O filósofo marxista Pietro Ingrao, figura histórica do comunismo italiano, fez autocritica e reconheceu ter sido Lenin quem assinou o decreto criando o primeiro campo de concentração na Europa, para aqueles que não compartilhavam suas idéias. Os gulags de Stalin já nasceram com a Revolução de Outubro.

"Já Lenin afirmava a construção violenta do Estado e do poder político, e não se tratava só de uma resposta revolucionária ao sangue do capitalismo. Era uma idéia errada, erradíssima, de abuso e de esmagamento, que também atingiria, cedo ou tarde, uma parte do movimento operário. (...) Os massacres estavam fadados a se voltarem contra os próprios militantes, os próprios filhos."

(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])


Essa política terrorista do leninismo, ou seja, do bolchevismo, que Pietro Ingrao condena, foi usada não somente contra supostos inimigos de classe, mas também contra a própria classe trabalhadora, como demonstra a repressão contra greves e rebeliões populares decorrentes da fome causada pela política do "comunismo de guerra".

"Em 16 de março de 1919, tropas da Cheka invadiram a fábrica Putilov. Mais de 900 trabalhadores que estavam em greve foram presos. Mais de 200 deles foram executados sem julgamento. Na primavera de 1919, ocorreram vários ataques nas cidades de Tula, Orel, Tver, Ivanovo e Astrakhan. Os trabalhadores famintos tentavam obter rações alimentares semelhantes às dos soldados do Exército Vermelho. Eles também exigiram a eliminação de privilégios para os comunistas, a liberdade de imprensa e eleições livres. Todos os ataques foram impiedosamente reprimida pela Cheka com prisões e execuções.

Na cidade de Astrakhan, os grevistas e os soldados do Exército Vermelho que se juntaram a eles foram carregados em barcaças, e em seguida, jogados no Volga com pedras em torno de seus pescoços. Entre 2000 e 4000 foram assassinados entre 12 e 14 de março de 1919." (O Livro Negro do Comunismo)


E o principal, a brutal repressão ao levante do soviet de Kronstadt, onde os bolcheviques usaram da calúnia infame ao chamar de "agentes do imperialismo e da contra-revolução", os revoltosos que sempre estiveram ao lado da causa socialista, inclusive tendo sido chamados de "honra e glória" da revolução, pelo lider do Exército Vermelho, o bolchevique Leon Trotsky, e que se rebelavam para defender uma democracia socialista, onde o poder residisse nos sovietes e não em nenhum partido, e houvesse liberdade de imprensa, pluripartidarismo e eleições livres.

A revolucionária marxista polaco-alemã Rosa Luxemburgo, que em hipótese alguma pode ser classificada como "revisionista" ou "oportunista", sempre criticou Lenin e o bolchevismo, tanto que no clássico "Questões de organização da social-democracia russa", escrito em 1904, criticou o modelo autoritario de partido defendido por Lenin.

Apesar de ter apoiado a Revolução de Outubro, inclusive se solidarizando com os bolcheviques, Rosa alertou para os riscos desse autoritarismo promovido por Lenin e pelos bolcheviques. Ao contrário de muita gente na esquerda, Rosa Luxemburgo não se deixou levar por uma visão acritica, beata, e de sacristia sobre esse processo revolucionário. Pelo contrário, manteve sua critica ao que achava errado no bolchevismo, e no clássico "A Revolução Russa", escrito em 1918, Rosa Luxemburgo alertou para as as consequências do autoritarismo bolchevique.

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")


Segundo o cientista social Michael Löwy, um dos mais importantes teóricos do marxismo na atualidade: "Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar "como que por magia, a mais bela das democracias", Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária. É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")

O regime bolchevique preparou o terreno para o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; em Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo)

A esquerda precisa romper com a tradição autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia. Por isso deve abandonar a idéia equivocada de que os fins justificam os meios, e principalmente, ter na radicalidade democrática, a base de sua atuação política.

Além de resgatar os clássicos de Marx e Engels, a esquerda precisa buscar em Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, na chamada "Escola de Frakfurt", no eurocomunismo, e na Teologia da Libertação, as bases na qual se fundamentar sobre o ponto de vista filosófico-ideológico, construindo uma alternativa real ao capitalismo, possibilitando assim a retomada da luta pelo fim da exploração do homem pelo homem.

"Está mais do que provado que a construção de uma sociedade nova é impensável sem a adesão consciente do povo. As supostas tentativas de fazê-la através de métodos impositivos, da manipulação ou do emprego de aparatos coercitivos resultaram inevitavelmente na Construção da antiliberdade; uma antiliberdade que mal sobrevive à própria crise, como é notário em todos os países do "socialismo real".

Portanto, o novo Estado, aquele que deverá emergir da superação do Estado capitalista, precisará ser concebido como um Estado socialista necessariamente democrático e de direito, submetido a uma sociedade civil autônoma e plural, bem desenvolvida e articulada. Trata-se de aprofundar o caminho já aberto por Gramsci.

Um item destacado refere-se à teoria econômica do socialismo. A experiência do "socialismo real" deixa evidente que a gestão burocrática ultra centralizada é fonte inesgotável de desperdício, destruição do meio ambiente, corrupção e ineficiência.

O neoliberalismo vem se apoiando nessa evidência para tentar comprovar o valor supremo da livre iniciativa. Resistir a essa onda com a reiteração do estatismo, além de realimentar os fatores de destruição e de crise, é autocondenar-se à total defensiva ideológica. (...)

O que significa que, numa sociedade socialista renovada, não deverá haver lugar nem para a livre iniciativa, que se alimenta do culto ao indivíduo empreededor-consumidor, nem para o estatismo, que se baseia no enquadramento do indivíduo produtor dentro da regra estabelecida através do plano."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")


E mais, a bem sucedida experiência da Nova Política Economica, adotada pelos soviéticos entre 1921 e 1928, assim como as recentes experiências do "Doi Moi" no Vietnã, e do "socialismo de mercado" na China, demonstram que o socialismo não pode ser estabelecido por decreto. Portanto a socialização da propriedade dos meios de produção, distribuição e troca deve ser processual, e não algo imposto da noite para o dia. O socialismo precisa se fundamentar no consenso, e não somente na coerção.

"O socialismo não pode, nem deve eliminar o mercado de imediato. Precisará conviver com o mercado e tirar proveito dele durante um tempo certamente longo. Só que, para ser compatível com o socialismo, precisará ser um mercado regulado, direcionado pelo planejamento do Estado e refreado no que se refere aos aspectos socialmente negativos." (Jacob Gorender; em Teoria e Debate nº 16)


A REBELIÃO DE TAMBOV

A rebelião de Tambov foi uma das maiores rebeliões do campesinato russo contra o governo bolchevique durante a Guerra Civil. Foi dirigida por um antigo membro do Partido Socialista Revolucionário, Alexander Antonov, que havia apoido a Revolução de Outubro em 1917, mas rompeu com o governo bolchevique em abril de 1918, devido a política de requisições forçadas ao campesinato imposta pelo "Comunismo de guerra".

A revolta teve inicio em 19/08/1920, e foi organizada pela União dos Trabalhadores Camponeses, dirigida por Antonov. O governo bolchevique foi abolido na região de Tambov, e foi convocada uma Assembléia Constituinte, que decidiu retomar as terras para os camponeses.

30 mil soldados do Exército Vermelho, comandados pelo marechal Mikhail Tukhachevsky, foram enviados para combater a revolta. Os bolcheviques usaram artilharia pesada contra os camponeses rebelados, e pior, a partir de junho de 1921, com autorização do governo bolchevique, o Exército Vermelho passou a usar armas quimicas contra os camponeses, que eram chamados de "bandidos" pelos bolcheviques. Sete campos de concentração foram criados pelos bolcheviques, para aprisionar os rebeldes presos(50 mil prisioneiros passaram por esses campos, a maioria mulheres e crianças).

A revolta chegou ao fim no final de 1921, e cerca de 200 mil camponeses foram mortos. Em 24/06/1922, Alexander Antonov foi assassinado pela Cheka, a policia política dos bolcheviques.

(Sobre a Rebelião de Tambov, procurem na wikipédia em espanhol, o verbete Rebelión de Tambov)

A REVOLTA DE KRONSTADT

Em fevereiro de 1921, eclodiu uma greve em Petrogrado. O motivo era a fome, causada pelo fracasso da desastrosa política do "Comunismo de Guerra". Então no mês seguinte, o soviet dos marinheiros de Kronstadt se rebelou, em apoio a greve de Petrogrado.

Os marinheiros do porto de Kronstadt - revolucionários de primeira hora, chamados por Trotsky de "honra e glória" da Revolução - se amotinaram contra o governo bolchevique. Uma de suas manifestações, o documento "Por que nós combatemos", dá uma idéia de como os princípios da revolução operária tinham sido traídos:

"Ao fazer a Revolução de Outubro, a classe operária esperava obter sua emancipação. Mas o resultado foi uma escravidão ainda maior da individualidade humana. O poder da monarquia policialesca passou à mão dos usurpadores - os comunistas - que, em lugar de dar liberdade ao povo, reservou-lhe o medo dos cárceres da Tcheka, cujos horrores ultrapassam em muito os métodos da gendarmeria czarista. [...] Tornou-se cada vez mais claro, e hoje torna-se evidente, que o Partido Comunista não é, como fingiu ser, o defensor dos trabalhadores. Os interesses da classe operária lhes são estranhos. Depois de haver conquistado o poder, há apenas uma preocupação: não perdê-lo."

Sublevados, em março de 1921, os marinheiros de Kronstadt estavam prontos para pegar em armas contra os comunistas, declarando: "Aqui [em Kronstadt] foi içada a bandeira da revolta contra a tirania dos três últimos anos, contra a opressão da autocracia comunista que fez empalidecer os três séculos de jugo monarquista. [...] É aqui em Kronstadt que foi lançada a pedra fundamental da Terceira Revolução, que romperá as últimas amarras do trabalhador e lhe abrirá o novo e grande caminho da edificação socialista".

Ironicamente, essa terceira Revolução foi massacrada por Trotsky, que era o comandante supremo do Exército Vermelho e assinou a ordem para reprimir os revoltosos. Entretanto a ironia da História é que anos mais tarde, em 1927, ele também iria se rebelar contra a ditadura do Partido Comunista. Como os marinheiros de Kronstadt, ele também seria massacrado treze anos depois, em 1940, quando foi assassinado por um agente stalinista no México, onde encontrava-se exilado.

(Sobre esse heróico levante socialista contra a tirânia bolchevique, vejam http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolta_de_Kronstadt)

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